sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O Cy-bata vigilante


Osamu Di Euncätzio, o filho de Saburou Di Euncätzio, casou com Kiku, uma camponesa desonrada com antepassados nobres Japoneses exilados. A sua primeira filha, Akatoriya – Fénix Apaixonada na língua dos Gemmyarkan – foi uma bruxa muitíssimo influente nos tempos de 1200 e 1323, durante o reinado de Bernard D’Joll. Essa seria a bisavó de Kensaku Murakami, o pai de Yui Murakami. Kensaku fora um pirata famoso no século dezasseis, que aterrorizava sob as ordens dos senhores feudais de Hokkaido, a zona mais a norte das ilhas Japonesas. A menção do seu nome fazia com que muitos comerciantes Chineses perdessem a vontade de viajar até à Ilha. Filho de Junko Murakami, uma mulher raposa descendente de um antigo imperador Japonês e de Toson Di Euncätzio, um homem foragido à justiça Bellante que conseguira escapar às frotas Bellantes ao perseguir os guardiães da Água. Este era filho de Udo Di Euncätzio e de Kyoko. Udo tinha sido o homem que perseguira a guardiã da Luz, enviando o seu irmão mais novo. 
Osamu chegou a ver o seu bisneto Udo até ser assassinado com um ritual purificador.         

Talvez seja pura coincidência que o falcão, um animal tão querido pelo irmão mais velho de Saburou, seja o brasão de armas da Família Von Tifon, ou talvez não…!

Akatoriya - para além de ser uma bruxa talentosa - gostava muito de tocar o koto Japonês, de forma a que fosse chamada de "Rouxinol de Rapina", um título de respeito e de terror...Diziam que quem a ouvisse podia morrer nos braços da mulher demoníaca.  Como ela conseguira ganhar este gosto tão requintado e próprio das princesas Japonesas, é até hoje um grande mistério. 

Enok Di Euncätzio, o Rei dos Bruxos deposto por volta de 1195, adorava ouvi-la, oculto sob um pessegueiro enquanto esta tocava, velada por biombos dourados e véus púrpura aveludados, no meio do crepúsculo. Instalada num palácio flutuante herdado do avô, ela costumava tocar para devorar humanos incautos. Talvez seja por isso, que ainda hoje, no lugar onde o pessegueiro nunca foi retirado por mãos humanas, ergueu-se por estas mesmas mãos, a estátua de Enok Di Euncätzio, para vigiar os homens de coração fraco, que tivessem a loucura de seguir a magia do Rouxinol de Rapina...! 

Pois ele era o único que não caiu uma única vez no feitiço da prima...!  

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

A Planta do Castelo Negro



Por vezes leio aquilo que já escrevi há cinco, quatro anos, e fico espantada como é que conseguia decorar ou imaginar um manancial de ideias, descrevendo os cenários, tão vívidos!  Por isso, decidi (não só para informar-vos, mas também para manter esta imaginação viva) descrever a planta do Castelo Negro, tal como eu a vejo.  Eu podia ser uma arquitecta se não fosse pela matemática, geometria e o facto de desenhar pessimamente...!

Pois então sigam-me até ao lar do Assassino do Amor, criado por ele próprio. 

O Castelo Negro tem um enorme pórtico de ferro como entrada: com pilares de mármore vulcânica e branca que só se encontra na Bellanária e madeira, com telhados pontiagudos ao estilo Chinês, de tijolos da cor do sangue. Os três portões (simbolicamente) são triangulares, com seis portas de ferro pintadas a verde-escuro. As cores já de si são muito pretensiosas: o verde e o branco eram cores da pureza e da nobreza e sagrado na Bellanária.

Atenção, a única maneira para entrar é pela alavanca de marfim que está precisamente perto das duas gárgulas de pedra, em forma de liões sagrados, de três metros de altura. Tem uma pedra de âmbar, também muito comum na Bellanária.  As duas portas, da esquerda e da direita são armadilhas.

Se não conhecem a geografia Bellante, então tenho de confessar que o lago que cerca a ilha que suporta o castelo tem um fenómeno muito particular: marés. Ninguém sabe como, nem porquê, a única certeza é que o lago é vulcânico, e um passo em falso para as portas cuidadosamente deixadas abertas pode fazer com que qualquer um caia na água borbulhante, alcalina, salgada e ácida da antiga cratera de um vulcão...Por falar nisso, sabiam que por volta do século um depois de Cristo, Samiel Di Euncätzio inventou o sistema de aquecimento a gás, redirigindo as condutas subterrâneas e naturais que corriam do Vale para o castelo. É caso para dizer que os Di Euncätzio eram uns génios no que consta a trabalhar com química, física, geologia, metalurgia e engenharia, combinando-as muito antes dos Humanos terem-se apercebido desta manipulação. 

Por falar em mecânica, a ponte que suporta o túnel para a ilha é todo feito de minerais extremamente resistentes aos vapores extremamente quentes que saem do lago.  Se estivessem comigo a fazer uma visita ao Castelo Negro (hoje em dia seria possível com o vulcão inactivo) ainda conseguiriam sentir os pés quentes. Por segurança, os visitantes têm sempre de tomar uns comprimidos para não sentirem tonturas. 

Agora que estamos em  segurança na ilha (ou se calhar não),  vou-vos apresentar o maravilhoso Castelo Negro! O Castelo Negro constitui-se de cinco torres e cinco alas: a Ala da torre Norte, a Ala Este, a Ala Oeste, a Ala Sudeste e a Ala Sudoeste. Se conseguissemos ver de cima o castelo, veríamos um edifício principal e cinco torres, dispostas de forma a que formem um pentagrama: as cinco forças da Natureza no Wu Xing.


O edíficio principal é o Equilíbrio, ou o Ying e Yang. Cada uma das divisões do castelo está pintada e decorada de forma diferente. A Ala da torre Norte é normalmente onde repousavam os hóspedes temporários, como a Princesa Eleonora ou a Princesa Sarvahdinada. A própria Roshini tinha passado na Ala Este. A Torre da ala Sudoeste é relacionada com as Fadas escravas.  A ala norte norte encontramos os quartos do Assassino do Amor ficavam.  Na Ala Sudeste ficam  quartos dos empregados, subordinados e aprendizes. A ala Oeste eram os escritórios e sítios de meditação.


Cada uma destas alas estão separadas e ligadas por intricados corredores, pontes de pedra muito resistentes que ligavam cada andar de cada torre. O sistema é de tal forma complexo que se não repararmos na gigantesco escadaria em caracol, esculpida sob a forma de tigre de pedra interior que liga cada torre ao edifício principal, poderemos achar que estamos num labirinto maquiavélico...!

E, se acharam o interior dos andares, corredores, quartos, salas e átrios suficientemente louco, esperem para ver as masmorras e passagens subterrâneas...!  O castelo é tão alto que se pode ver as montanhas que o cercam do último andar da Torre Norte. Pode-se dizer que Samiel Di Euncätzio queria ultrapassar os templos e palácios Bellantes, construídos na Cidade dos Deuses. 

Aqui temos o Castelo Negro...! 

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Lisaiten (Losjaftzen ou Losjafhden) e os Aosbeltzy


                  Muita gente ajuntou-se perto da estação de Losjafhden (que se podia pronunciar de várias maneiras, mas Fen Li e Quing chamavam àquela terra de Lishay-tēn), cuidadosamente, mas com curiosidade, para observar e saudar, gentilmente, Quing e Fen Li, que iam de mãos dadas com o experiente guerreiro; a maior parte das gentes bellantes eram de estatura baixa ou média, não atingindo mais que o metro e setenta de peles morenas e delicadas, verdadeiramente felizes, com sorrisos pacíficos auspiciando bondade, humildade e uma honestidade que era espelhada dos seus olhos negros, brilhantes. As casas das vilas e aldeias tinham telhados de cobre e bronze, as casas dos burgueses, tal como a dos camponeses, eram enchidas de várias pinturas coloridas alusivas à rica fauna que prosperava sobre os vales daquelas montanhas fora, giestas florescendo em várias camélias cor-de-rosa, sobre flores de lótus vermelhas, em fundos brancos e azuis, em pedra magnifica de mármore e tijolo firme, reluzindo ao sol fraco.

O que não mudava definitivamente eram as vestes. Estas eram uma espécie de togas cor-de-laranja, brancas e azuis, com faixas aveludadas numa cor de cereja, macia, e quente, o traje típico da Bellanária, juntamente com túnicas verde-claras e leves de seda. Todos, naquela terra, segundo explicava pormenorizadamente o Cocheiro, eram Sjhataram, que, na língua natal da ilha significava “Filhos e Irmãos dos Deuses”, uma religião antiga, dedicada aos Deuses que realmente consistiam dez por cento da população bellante.

Existia um sistema de protocolo muito rigoroso, quando se referia aos Deuses, a própria linguística bellante, muito semelhante às línguas tonais asiáticas, tinha um bizarro e complexo número de pronomes pessoais. Os Deuses escreviam e falavam de uma maneira completamente diferente dos camponeses, aldeões, cidadãos humanos, tal e qual como acontecia com as Fadas, as Kinnaries, os Demónios, os Grifos, os Centauros e os Feiticeiros. Cada um tinha a sua própria língua bellante.

«Na verdade, não há uma língua bellante básica, a não ser a dos Humanos, é claro, que se chamam por aqui pelos Aosbelsi, os “Homens da Bela Terra”. Existem vários tipos de línguas bellantes, mas aconselho-vos a aprenderdes a língua dos Aosbelsi, que é a mais fácil e mais falada entre os povos e várias raças da ilha.» Existia um registo cerimonial para cada raça, fosse ela Fada, Feiticeiro, Demónio, Humano, Grifo, Centauro, criaturas sagradas ou até mesmo os Deuses.

Surpreendentemente, os poucos Demónios que tinham encontrado no caminho falavam num Bellante convencido e muito carregado nos K’s e nos C’s e H’s, o que era normal entre a gente da montanha, com um dialecto muito próprio das zonas da Sibéria e da Rússia, ou talvez mesmo da Índia, com um tom alentejano, com um ar muito informal e rude. As Fadas tinham um ar muito europeu, acrescendo muitos S’s e T’s portugueses, com cabelos de cores variadas e tons diferentes, dando do ruivo pálido até ao louro cor de leite e até parando no amarelo tailandês. Os Feiticeiros eram geralmente europeus ou com ar americano. Havia uma diversidade de etnias que ultrapassava os conceitos de tradição e conservador da Bellanária. A pronúncia mais comum entre os Humanos bellantes nativos perante os estrangeiros era semelhante a de um Português arcaico expandido em Latim, com traços de Chinês, com uma mistura e nuances de sumério e hebraico.

                 Para além disso, todas as classes em dias vulgares tinham de se vestir de igual para igual para não haver distinção entre nobreza e povo. A realeza e a família real promoviam a igualdade e fraternidade entre classes sociais e estados, para que o Reino fosse mais unido. Apesar de assemelhar a uma sociedade bastante hierarquizada e estratificada, a Bellanária não criara as suas típicas formalidades e salamaleques para fazer frete e ficar bem diante do mundo antigo; as intenções de todas estas ancestrais tradições era apenas para cultivar a humildade e respeito que havia entre todas as classes.

Para grande espanto dos dois jovens, a maior parte das casas eram feitas de madrepérola, arroz cintilante de estrela, e cimento de tijolo, à medida que se aproximavam das ruelas e vielas dos arredores, viam que estas tinham um aspecto incrivelmente limpo e as portas estavam todas abertas; nem sequer existiam muralhas para defender a pequena Vila de Losjafhden, que ficava a dez minutos de Cyborg Town, e era um enchido de bairros bem catitas, com todas as bandeiritas bem colocadas. Quing foi o primeiro a tentar inquirir sobre a questão, olhando de baixo a acima, andando nos passeios da calçada.

- Aqui, as pessoas confiam muito umas nas outras, não há demónio algum que não faça a saudação nacional antes de entrar numa casa de gente civilizada, por isso, a delinquência é muito rara. Os campos são irrigados com a ajuda das monções de Outono, tudo se aproveita e se poupa, não há lugar para a luxúria, mas a beleza e riqueza de detalhes é admirada por todos os artistas e arquitectos Bellantes, em todos os Cinco Reinos. – Explicou o Cocheiro, parando os cavalos perto de uma moradia que albergava uma imensa família de árabes, mais a família do cocheiro, ornamentada com pérolas e ouro. Até os mais pobres eram ricos naquela ilha.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Seguir o Caminho de Tezcatlipoca (excerpto de livro)


Fosse lá ilusão ou não, o quarto enorme onde a Imperatriz acordou não era daquele que pudemos imaginar em sonhos: era melhor…! A câmara onde estava era ampla e com cerca de vinte metros quadrados de área, um palco de madeira de andiroba, onde a distinção e elegância combinavam em várias carpetes, cobrindo o chão gelado. Uma brancura e organização dominavam toda aquela sala, iluminando-a com raios de sol potentes, afastando as cortinas verde-escuras de veludo, bordadas com flores de gerânio e passarinhos colibri de ouro. A sala rectangular, com os tectos pintados em frescos de magnificência renascentistas, ostentavam um bom-gosto espantoso, e, sem a menor sombra de dúvida, uma repressão fascinante, um poder incapaz de ser controlado, uma caverna repleta de maravilhas, antiguidades, riqueza que denotava uma perfeição impossível.

A cama de talha dourada, com vários jaguares a proteger as alcovas de cores quentes, e de pele, eram tão fofas como nuvens, podendo alguém afundar-se completamente nelas, esquecendo tudo e todos, enquanto que as colchas eram cor-de-rosa, marcando uma imagem claramente compreensível e que sabia o que os outros queriam, embora não pudesse ser muito confortável, quando Sarvahdinada recuperou por fim os sentidos, pensou que estava num sonho criativo e artístico, muito clássico, mas imaginativo.

Sobre o tecto, um candeeiro de lâmpada de ouro dava o toque final à sala branca, enchendo o ar de um incenso perfumado em hortelã e gerânio, gerando um efeito soporífero em qualquer que sentisse tal delicado e fino aroma. No canto inferior esquerdo, havia uma porta para um quarto de banho, com torneiras de metal, com kinnaries pintados a ouro, e com jóias de turquesa, tudo isto rodeado por azulejos mesoamericana, demonstrando cenas de um paraíso azteca, onde a água e o azul-claro proliferavam em harmonia com as árvores e animais descritos em tal Éden selvagem.

No entanto, rodeada de tanta riqueza, ela não podia deixar de se sentir assustada. Alguém a tinha levado para aquele lugar, e, abrindo os olhos, espantada, num sitio onde não devia estar, ela reparou que as suas roupas tinham mudado de sujos trapos, para sedas brancas, um vestido de noite belo, e, que lhe assentava que nem uma luva, agraciando a sua curvilínea figura.

Ela sentia que alguém a estava a vigiar, e então, viu que a sala onde estava tinha como janelas cinco portas para a varanda, onde saia uma luz espantosa, várias flores repousavam, verdes, encantando o cenário, cintilando, a meio da manhã. Só então reparou que estava num palácio, cercado por uma selva imensa, a perder de vista.

Quando dormia em pequena no Château do Duque Von Tifon, ela tinha o quarto mais belo que se pudesse imaginar...mas não era nada comparada com este quarto digno de uma princesa dos contos de Fadas Bellantes. Na Alemanha decerto que não haveria uma vegetação tão variada. Se não tinha sido raptada nem pelos Alemães, nem pelos homens da temível Kempeitai, então aonde estaria ela...?

Embora gostasse da qualidade e do tradicional, aquilo certamente era demasiado tradicional, até mesmo para ela; móveis de mogno escuro, tirados de um antiquário qualquer, uma biblioteca privada cheia de livros e livros sobre a vida azteca, até existiam cópias raríssimas e modernas de códices de civilizações mesoamericana!... Havia uma moldura de uma fotografia a preto e branco assinado pela autêntica Mata Hari, datado de 1915, e até havia, ao pé das janelas, um esboço verdadeiro encomendado pelo proprietário a Picasso das Demoiselles de Avingnon, coisa que espantou muito a mulher, foi ter visto um pisa-papéis em metal do símbolo do México, uma águia a segurar uma serpente, empoleirada num cacto, sobre uma das prateleiras da pequena biblioteca de livros, todos eles em Inglês corrente ou em Mexicano, ou mesmo em Bellante, sobre Shunrasen. Pousado entre outras coisas, estava também um aquário em forma piramidal, como se fosse um templo mesoamericano, com os seus cinquenta centímetros de altura e dois metros de largura, e quatro peixinhos diferentes a nadarem, livremente, entre algas tropicais e corais provenientes, talvez, segundo os cálculos de Sarvahdinada, do Golfo do México.

Pondo os braços nas colchas da cama, ela respirou bem fundo o ar fresco que vinha da selva. Se tudo indicava para um clima exótico e quente...Supôs que aquele palácio só podia ser do seu salvador ou do seu raptor. O mistério assombrava Sarvahdinada Di Neptunus, e quanto mais pensava nisso, mais embriagada ficava com todo o esplendor daquele quarto.  Quem é que poderia viver ali...?

Os cabelos reflectiam os raios de Sol numa cor dourada e açucarada, estendidos ao comprido na cama. Ao passar com os dedos a longa cabeleira, Sarvahdinada ficou boquiaberta! Estavam mais sedosos do que nunca...! Um milhão de perguntas assaltavam a sua cabeça, mas, quanto mais pensava nisso, mais confusa ficava.
Entretanto, suspirou, aborrecida, esperando que alguém lhe desse respostas, para toda aquela confusão, sim, porque a solução para todo aquele mistério não ia exactamente bater à porta, pois não? Ou seria que ia?... Bom, o que importava é que ela estava sã e salva, e que, aonde quer que estivesse, já deveria estar bem longe daquelas criaturas asquerosas e demoníacas…Pelo menos por agora.
De repente, umas portas escuras de carvalho refinadas abriram-se juntas, de par em par, e ela viu um homem moreno ricamente vestido numa túnica negra, bordada com espirais de sangue quente. Usava uma gola felpuda de pele de jaguar escuro que ornava a capa de couro, que caía desde os ombros até ao chão de mármore escorregadio. No entanto, o rosto era incrivelmente masculino. Os seus olhos verdes brilhavam num mórbido e estranho prazer. O cabelo negro tinha sido rapado de forma militarística e moderna. O nariz cruel e afilado (tal como qualquer guerreiro antigo da Bellanária) pressentiu o medo dela. O pior nem era isso, ela conseguia escutá-lo, conseguia ouvir o barulho do pé artificial de obsidiana a roçar contra o chão, como se fosse um coxo, porém aquele, aquele era um homem muito poderoso.
- Muito bom-dia, Princesa Sarvahdinada...já lá vão quase dezoito anos desde que a vi, na cerimónia do Segundo Baptismo. – Disse a voz fumosa e sedutora do Senhor Tezcatlipoca num Bellante corrente e fluente. O barítono calmo daquela voz causava-lhe arrepios. – Para os Humanos, dezoito anos é muito tempo, mas, como muito bem sabeis, para mim isso é uma mera migalha nas centenas de anos que estarão para vir.  
Sarvahdinada, surpreendida com o facto de que o homem que a tinha salvado das tempestades do Deserto da Sabedoria fora o deus que outrora exigia mais sangue humano do que outro deus no panteão Bellante, não deixou de inclinar respeitosamente a cabeça em direcção ao deus de dois metros de altura.
- Muito obrigada pela vossa misericórdia, meu Senhor! – Gaguejou ela, o coração a pular, tanto da adrenalina de conhecer um verdadeiro deus em plena consciência, como também da aflicção. O que quereria o Criador de Si Próprio dela?
Enquanto um jovem servo pousava um sumo de maracujá e biscoitos de manteiga numa bandeja de prata à beira da cama, ela sentiu a respiração do deus perto dela. Sem que desse conta, ele já estava sentado na cama do lado dela.
 Estalando com os dedos anormalmente magros, quais patas de um jaguar faminto, ele olhou gentilmente para a mulher, que agora lhe virava as costas.
- Oh, Princesa Sarvahdinada...O prazer foi todo meu, não vos podia deixar assim, à mercê daqueles humanos selvagens. – Acenou neutralmente para a comida. – Aceitei, por favor, filha do meu sangue, estas delícias.
- Aqueles Japoneses não são selvagens! Eles só estão a cumprir o dever deles, que culpa têem do Imperador deles estar em guerra comigo? – Respondeu Sarvahdinada num tom estranhamente corajoso perante um deus.

 

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Os chocolates não tão amargos (Parte II)


Embora a Dinastia Di Neptunus já viesse de seis gerações combinada com vários casamentos de outras famílias nobres da Bellanária, Melnjar VI começou lentamente a ficar cada vez mais parecida com a primeira Imperatriz. Na maior parte das vezes, a tia de Eris tinha uns sonhos muito esquisitos à noite. Dizia que, quando o marido a vinha visitar, o ardor da paixão não era o mesmo quando eram novos, que sentia-se a arder de febre sempre que estava sozinha, e que ao acordar de madrugada, via que estava ali, à beira do seu leito divino, a pele de uma cascavel dos montes do Sul Bellante. Que as cortinas sibilavam à noite, que ela estava sempre a ouvir as cordas de um instrumento exótico ao adormecer, um zumbido de outro e uma voz de uma mulher a cantar sabe-se lá de que lugar, numa língua estrangeira.

- Mas…oh, como todos estes sons são belos…tristes mas belos! As árvores a assobiar ao ritmo da música, enquanto os pés cantam ao sabor do vento…Olha, uma coisa, filha: se alguma vez experimentares os chocolates e pastéis dos Di Euncätzio, não te duvides dos teus sentidos, pois estas iguarias são comida demasiado voluptuosa para donzelas da tua idade. – Comentava a tia à princesa enquanto caminhavam em direcção à carruagem que as levaria até ao bairro Chinês. Como sempre quando saía, a Imperatriz usava, juntamente com o quéchquémitl da cor da noite pintalgado com estrelas, uma túnica da cor do mar, aveludada e que chegava a cinco metros de comprimento de cauda, com a tiara prateada com penas prateadas de Imperatriz a adornar a longa cabeleira, amarrada num carrapito de carvão fulgurante. Cabelo esse que chegava perto do peito elegante de senhora. Levava um leque de penas de quétzal, adornado com uma jóia de madrepérola.

A acompanhar a senhora, estavam duas aias de inferior mas graciosas vestes que a ajudavam a carregar o pesado Keramyatzal, a túnica de sete peças cerimoniais, apenas usado pelas donzelas da casa Imperial. Ambas usavam lindas tiaras de bronze, os símbolos das respectivas nobres famílias que faziam parte da corte de Suryadevnahutbal encravados em cada uma. Também elas usavam o quéchquémitl, a camisola sem alças ou mangas, que cobria dois terços dos seios delicados. Estas usavam lindas saias cor das ameixas, de um vermelho rosado, combinado com uma rosa bordada em branco, a cor da felicidade e da pureza. As sandálias cor das lindas flores alaranjadas com sinos de prata anunciavam a todos os sacerdotes, guardas, servos e escravos que aquelas eram as aias da Imperatriz.

As trombetas de bronze ecoaram por todo o districto sagrado onde viviam os nobres de todo o Império. Eris tinha-se apressado para pôr o seu melhor quéchquémitl cor do oceano, claro como os seus olhos. Tinha lavado o cabelo nas casas de vapor que existiam no districto, desenriçara-o e pusera um pouco de perfume doce de baunilha por todo o corpo. Tinha esperança que voltaria a ver o seu querido Samiel…! Seria que a mãe finalmente consentira em conhecer formalmente a família dele? Que poderia dizer ao jovem, formoso e simpático pasteleiro?

A tia esboçou um sorriso ao reparar que a princesa usava uma bonita túnica salgado da cor da turquesa a cobrir os seios bonitos como duas laranjas suculentas.  O ribombar constante dos tambores e das alegres flautas acompanhava os guardas que, ora montados em cavalos monstruosos, ora a tocar os instrumentos, caminhavam em direcção às escadas de mármore que davam para a saída sul do complexo divino e senhorial. Supostamente, os tambores, as trombetas e as flautas tocadas num salmo protegiam e abençoavam as seis senhoras que se afastavam de Suryadevnahutbal (o Sítio em que O Sol Abençoou). A própria Imperatriz juntou as mãos a um espinho de agave, causando um pouco de sangue em ambos os dedos anelares.

- Que os Deuses nos abençoem nesta viagem tão perigosa, a mim e à minha humilde sobrinha, Princesa Eris Di Neptunus. – Com estas mesmas palavras cantadas, arrancou um pedaço do cabelo arruivado e dourado da princesa, em seguida queimando-o num pequeno incensório em forma de coruja. Tudo isto acompanhado com o sangue das seis damas e os espinhos do agave. A partir de aí, as nuvens que outrora ameaçavam o alegre passeio da Imperatriz e da sua escolta (oito guardas, duas aias, as damas-de-companhia da Princesa e a própria Eris) desapareceram por completo. Melnjar VI ainda tinha um pouco de poder vindo dos seus antepassados dragões emplumados, metade homens, metade serpentes.  Ou seria por causa dos quatro guerreiros músicos que Jutierkajam, Jetwas e a sua mulher Shamanarta tinham decidido que não iria chover na viagem de quinze quilómetros até ao bairro Chinês…?

Ao atravessarem os portões, Sua Divina Alteza soltou um grande suspiro:

- Há décadas que não saía de Suryadevnahutbal. Só quando chegaste de barco há dez anos atrás é que saira para te conhecer, filha. – Parecia um pouco exausta com o pequeno encantamento, ao abanar-se com o leque de penas de quétzal.

Com ambas separadas por uma parede fina de pele de jaguar que determinava a posição de tanto a Princesa como Sua Divina Alteza, Eris lançou um olhar discreto para as janelas, cobertas com cortinas púrpura. Ninguém poderia ver o rosto da Princesa. No entanto, a Sobrinha da Imperatriz gostava tanto da Cidade dos Deuses que não podia deixar de ficar curiosa.

 - Tia…a que se deve esta saída momentânea do Lugar que a Senhora Bilafassabnsair escolheu para Ser o Lar d’Ela?

A mulher mais velha soltou uma risada paciente. No entanto, por detrás do leque e da pequena cortina de pele, os olhos azuis brilhavam com um ar de desprezo. Enquanto que a mulher mais nova tinha um belo cabelo louro arruivado, a Imperatriz usava um cabelo negro, severo, quase tão negro como a noite. Porém, não tinha o aspecto trigueiro e suave das mulheres da plebe. Eris, a sua Sobrinha, estava a tornar-se demasiado popular na Corte de Suryadevnahutbal, precisamente pela sua insistência no bom-gosto, nas leituras, e, claro pela sua beleza encantadora. A Princesa era exactamente o pólo oposto de Sua Divina Alteza. Enquanto que a Imperatriz pensava que os poemas eram algo digno apenas de cerimónias religiosas e  de Estado, Eris tinha o hábito de recitar poemas a toda a hora. Adorava fazer peças teatrais com as aias e gostava de apanhar ar fresco…Algo que fazia com que a maior parte dos sacerdotes franzissem o sobrolho. Mas a verdade é que ela era calma, sorridente e graciosa: três qualidades que obviamente faziam com que ela fosse a preferida dos altos-oficiais do Exército da Guarda Imperial.

Sua Divina Alteza achava que aquele comportamento de nunca aceitar um único pretendente de linhagem nobre, mesmo pela via tradicional de uma casamenteira, era recato a mais. E Saburou Di Euncätzio, o meio-irmão de língua bifurcada de Samiel, sabia como dar a informação exacta à Imperatriz sem levantar quaisquer suspeita das açafatas. Escandalizada com aquele comportamento da Sobrinha, a Imperatriz mandou uma carta a Yee Di Euncätzio. Preferia que ela se casasse com um filho legítimo de uma família talentosa e burguesa…do que ser a amante de um homem sem berço, um filho adoptado pela porta do cavalo!

Mas, mais do que isso, havia algo nos olhos azuis que inspirava medo. Era o tipo de sentimentos mesquinhos que uma filha não quer numa mãe.    

- Acontece que, através dos meus espiões, soube que há um homem da classe burguesa que está interessado em ti, filha. Por isso, decidi que seria melhor conhecer a família do teu pretendente do que estar a perder tempo a ouvir coisas alheias.  

Um homem da classe burguesa?! Eris ficou radiante de contentamento, ao pensar que aquele homem era o formoso e jovial Samiel. Como estava enganada! Antes mesmo de sair de Suryadevnahutbal, ela tinha a ligeira impressão que eram os Di Euncätzio quem elas iriam visitar, mas nunca pensara que a tia estaria a planear casá-la com um dos filhos do Mestre Di Euncätzio.

Sim, ela estava de todo convencida que iria encontrar-se oficialmente com o seu querido harpista.

Ao chegarem ao bairro Chinês, foram recebidas por uma multidão de imigrantes das Ásias, expectantes. Porque seria que a carruagem de Sua Divina Majestade se tinha dignado a passar por eles?

Uma bela senhora de origens Chinesas abriu os portões de trás da pequena vivenda onde vivia Yee e as suas cinco mulheres mais os seus filhos. Era engraçado, pensou a jovem Princesa: a mulher, apesar de não se parecer nada com Samiel, tinha  os mesmos olhos verdes. Eram muito bonitos, aquelas pérolas que se viam por detrás do véu delicado de seda perfumada… Tinham um ar tão amável, tão maternal!

- Sedes bem-vinda à Pastelaria Di Euncätzio, Vossa Divina Alteza e Alteza Imperial!  – Fez uma vénia extremamente formal a ambas as mulheres, quando estas desceram da carruagem.  – Peço-vos muito humildemente que me acompanhai até à sala de espera.

Eris sorriu, ao vislumbrar outra mulher de olhos negros e rasgados, com as mesmas vestimentas que a primeira. Ambas pareciam doces e muito esbeltas, embora ela só conseguisse ver os cabelos negros e exuberantes. Parecia quase inacreditável que fossem as esposas de Yee Di Euncätzio. Pelo pouco que tinha ouvido falar dele, o Mestre Di Euncätzio não era exactamente alguém sociável. Samiel tratava-o carinhosamente a ele como o “Velho”.  Só isso dava uma pista óbvia de como era o cobarde chefe da família de comerciantes.

Porém, ao chegarem ao opulento e colorido átrio, ela ficou encantada…! Alguém estava a tocar um alaúde Chinês.

- Princesa…A sua presença ilumina esta casa Chinesa. – A voz sabia falar Bellante vernacular da Cidade dos Deuses, mas não era a de Rwebertan Samiel Di Euncätzio.

- Hime wa koko ni aru…arimasen ka? – Outra voz de homem, mais velha, desta vez em Japonês, numa corrente de sílabas quase incompreensível para a princesa. A princípio, pensava que era o “Velho”, mas quando uma mão feminina, mas com unhas compridas e esquelética, ligou o óleo que percorria a casa, iluminando os candeeiros de cristal, ela reconheceu os dois Encantadores das Montanhas Japoneses.

Arqueou as sobrancelhas, ao ver que os três olhavam para ela, deslumbrados com a beleza dela.

O do meio assobiou num tom rude:

- Erisu-Hime kawaii wa desu, nee?    

O mais novo soltou uma risada quase arrepiante e falsete, enquanto mostrava os seus dentes afiados. Mas o mais surpreendente é que era ele quem estivera a tocar aquele Rhuan.  A Princesa nunca esperaria isso de um homem que parecia ter a mente ligeiramente perturbada.

- Vá lá, cavalheiros, não façamos disto um circo. Afinal de contas, estamos na presença de senhoras da corte sagrada de Suryadevnahutbal.
 
Uma mulher, alta com lábios sensualmente vermelhos, vestida às maneiras de uma senhora de corte Japonesa com treze camadas de roupa, apareceu, descendo as escadas em caracol  em cujos corrimões estavam empoleirados os três filhos: Yamelino, Hayabusa e Saburou. Eris ficou um pouco enojada quando a Senhora Uarasaki sorriu: tinha os dentes afiados e negros, como o carvão.

 As quatro damas da corte recuaram, um pouco assustadas e repugnadas, pois a imagem da Senhora Uarasaki assemelhava-se aos olhos delas a uma prostituta. Tentaram implorar à Imperatriz para que se retirassem de imediato para o districto sagrado, antes que ficassem impregnadas com tanta imoralidade burguesa. Mas Sua Divina Alteza estava sob a influência dos dois Demónios da Inveja e da Vaidade.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Tal como a água e o azeite de jade

Citlali e Zollin Cuixtleuctic

Na verdade, faz sentido publicar este pequeno texto, depois de tantos meses sem vermos Citlali...só queria publicar isto mais tarde, mas enfim.  Depois conto o que aconteceu com Citlali.
 
 
Nas noites do Festival das Bandeiras, as margens nortenhas do Rio Bênção pareciam ainda mais geladas do que nunca. O Festival das Bandeiras, criado para celebrar a união entre a Senhora Melnjar (a primeira Imperatriz da Bellanária) e o Imperador, um antigo antepassado dos que viriam a ser os Aztecas, exilado da América central. Losjafhden era um lugar maldito, com uma neve acinzentada e áspera, lamacenta. Fazia com que a música que o velho oni tocava não fosse tão estridente e incómoda para os ouvidos dos dois feiticeiros orientais.

Mesmo assim, ao aportarem nas areias ásperas e geladas, perto da enorme casa Japonesa de madeira, o jovem ficou surpreendido. Há imenso tempo que não vinha ao Norte. A madrasta tinha-o proibido de se aproximar da meia-irmã, que apesar de tudo, era muito doce e amável para com ele.

Era como se o tempo nunca passasse na velha aldeia de Lisaiten. Ali nunca havia bandeiras, e o frio entrava dentro das orelhas pontiagudas do jovem feiticeiro, metade gato, metade humano…

«Que sítio tão triste…parece que até os ciprestes choram com esta horrível maldição, os oni transformaram o Rio sagrado de cor de jade numa cor feia de ocre, cinzenta, com o cheiro da morte…! Porque é que os habitantes de Lisaiten não pedem a ajuda à Senhora Melnjar e à Senhora Swertyhina?»

Que motivos os habitantes da aldeia Japonesa teriam para festejar? Comentara o velho feiticeiro de Magia Universal ao se aproximarem das imediações das ruínas que anteriormente fora a irmã gémea de Cy-bata Teito. De facto, a guerra tinha deixado uma horrível cicatriz na pobre vila de Losjafhden. E embora já se tivessem passado mais de cem anos da morte do Assassino do Amor,  ainda se respirava o cheiro a queimado. A alva há muito que passara, levando com ela as cores douradas e azuis do rio. O nevoeiro escuro, porém, era tão espesso que o Sol não conseguia chegar para além do topo dos centenários pinheiros bravos. A velha aldeia já não era mais do que uma sombra da antiga vila fronteiriça que atraía comerciantes vindos a subir as pesadas correntes Bellantes. Rukorou Ishikawa sabia perfeitamente que ninguém se atreveria a fazê-lo por esta altura do ano.

No entanto, no meio desta manhã com um sabor amargo a cinzas e a enxofre, uma velha senhora apareceu, a pentear o comprido cabelo sem brilho, negro com alguns fios de cabelo prateados, brancos como a Lua. A segurar-se nas confortáveis botas do Norte, ela lançou um olhar curioso para os dois visitantes.

- Onisamatzeka Kazue…! – Clamou o feiticeiro Japonês, ao libertar a âncora para o infinito leito do rio sagrado.

- Ishikawa…! – Resmungou a velha, ao apoiar-se no cajado de madeira. Esboçou um pequeno sorriso, enquanto o jovem olhava para ela com um ar simpático. – Sim, sou a esposa do velho Di Euncätzio Jamelino Beno …que quereis de mim?

Demorou-se um pouco no seu coxear, as cinzas da lanterna de papel a ocultar a fealdade do seu corpo encarquilhado, quase sem vida…Ou pelo menos era como Zollin a imaginava, por detrás da lanterna de papel e do biombo. A velha “Tia Kazue” era uma mulher que apesar de usar umas vestes dignas da mais nobre das mulheres Japonesas da altura, a sua aparência deixava a desejar, pois era demasiado alta para uma mulher e o nariz era um pouco como o de uma coruja sábia. As sobrancelhas há muito que lhe tinham sido arrancadas. A sua dieta de órgãos de crianças há muito que lhe fora negada. Sobrevivera aqueles últimos cem anos com os cadáveres de soldados humanos Bellantes, como uma velha hiena.

 

«Não te deixes iludir pela velha…no seu auge costumava ser uma assassina de humanos experiente!»

A velha não parecia ser assim tão má. Fez uma longa vénia, enquanto duas jovens e assustadiças açafatas de sangue humano seguravam num biombo que a separava dos dois feiticeiros. Apesar de andar com um cajado, havia algo de errado com o seu pescoço que denotava uma figura entroncada. Zollin era um quarto demónio e sabia o quanto as aparências iludiam.

A iniciação como feiticeiro mostrara-lhe que tinha de desconfiar do olho “humano” e confiar no olho “mágico”, aquele que segundo  Ishikawa, estava localizado na região entre as sobrancelhas. Durante os dias em que caminhavam como aprendiz e mestre, Ishikawa aparentava ser um velhote Japonês completamente normal. Mas a verdade é que continuava a ser um omyouji dotado e um incontestável estrategista!

Lançou um olhar curioso à velha nobre aparentemente inofensiva. Depois, mostrou a uma das criadas a adaga com uma lâmina afiada de obsidiana. Perto do punho feito da mais preciosa das madeiras, estava carvada na mistura de aço com obsidiana, a imagem terrífica de Enoque Di Euncätzio, a ajoelhar-se perante o jaguar Bellante.

Curvando-se perante a senhora viúva dos Demónios, Cuixtleuctic Zollin pousou a lâmina como símbolo de respeito não só perante a lei da Magia Negra, como também perante a Lei dos Humanos, das Fadas, e dos Deuses. Nesse momento, os seus olhos amarelos, cor de âmbar resplandecente, brilharam num tom arrepiante.

- Senhora Viúva Onisamatzeka…permiti que me apresente diante de vós: tende aqui, perto do Rio Bênção, Cuixtleuctic Zollin, um omyouji de segunda classe, servo da Guarda Imperial da Casa Di Neptunus. Tal como o seu falecido marido, tenho sangue de youjin. Porém, a tribo à qual pertenciam os meus antepassados, infelizmente há muito que foi chacinada não só pelos Humanos, mas também pelas conspirações do Mestre Di Euncätzio Samiel. Sei que odiastes esse homem que não pertençia nem a nação, tribo, raça ou classe. Sou apenas um instrumento dos Humanos. No entanto, vim aqui como diplomata em nome deles, e só espero que o seu cunhado, o milenar Mestre Saburou, nos aceite como hóspedes. – Declarou o jovem feiticeiro, com uma língua que deixou o velho samurai orgulhoso, embora o ocultasse por detrás da sua aparência sobranceira e austera de representante de Suryadevnahutbal.

Subitamente, uma voz ecoou no meio do nevoeiro cinzento:

- Tens uma língua afiada para quem convive com Humanos, rapaz cy-bata. Infelizmente, não creio que o teu mestre seja o mesmo Ishikawa quem eu conheci, há mais de mil anos atrás.

Numa das varandas da enorme e luxuosa, os olhos negros e penetrantes de Saburou brilharam com um ar trocista, quase céptico. De facto, o jovem filho da “mulher jaguar” tinha vindo como diplomata para conversar com os oni, sendo um quarto demónio. Infelizmente, por muito treino que o jovem com olhos de íris afiada tivesse, nada o teria preparado para se encontrar com um dos sobreviventes da milenar Guerra de Poriavostin. Envolto numa peliça de jaguar negro, o traiçoeiro Saburou Di Euncätzio envergava umas botas pretas de couro de serpente. A cobrir os cornos compridos de prata, um chapéu de veludo da cor do vinho ornava a cabeça comprida. O rosto estava de tal forma imerso na penumbra do nevoeiro que seria impossível um falcão ver a verdadeira forma do oni  de corpo elegante e atlético.

 «É ele que cria este nevoeiro à volta de Lisaiten…?»  Zollin controlou-se, com um franzir de sobrolho.

Subitamente, um maracujá oco abriu-se em cima da cabeça do jovem, uma coisa que o jovem nunca esperava que acontecesse.

 No entanto, Ishikawa sabia o que é que aquilo queria dizer! Nunca se sabia quando Saburou Di Euncätzio podia assassinar alguém…Fosse com um ataque surpresa de adagas, lacaios demoníaco, um gás letal solto de uma garrafa vazia, ou simplesmente com uma força da sua própria magia! De imediato empurrou o jovem aprendiz para outro lado, criando uma barreira com um murmurar rápido de palavras em Sânscrito em volta de si.

Para grande surpresa do samurai, o fruto vazio revelou apenas um banho de chocolate adocicado com baunilha.

As mãos enluvadas e prateadas do velho bruxo demoníaco pousaram num gesto um pouco aborrecido, enquanto os dois olhos negros reviravam num gesto de desprezo.

- Oh que pena, parece que é mesmo o maldito Ishikawa…! Só mesmo o idiota com um sentido de bonzinho como tu podia estragar o baptizo de partida de Magia Negra ao miúdo! – Comentou Saburou num tom de desdém. – Os Deuses devem ter-te dado o néctar da eternidade para me chateares até morrermos de tédio.

Ao acabar de pronunciar estas palavras, uma criada humana hipnotizada tocou um gongo, como se quisesse que alguma audiência invisível se risse.

Ishikawa retribuiu com o mesmo revirar de olhos. No entanto, sorriu com um ar cortês, sem nunca perder a compostura.

- E só mesmo um lunático como vós, Saburou Di Euncätzio, iria achar piada em brincar com a vida de pessoas inocentes!

A voz de Kazue ouviu-se, oculta através dos biombos:

- Como pode ser tão rude ao ponto de insinuar que eu e o meu irmão queríamos matar um rapaz que tem o mesmo sangue que nós?!

O velho guerreiro não teve outro remédio senão inclinar respeitosamente a cabeça. Que vergonha, tinha-se deixado levar pelo ódio que sentia…! Isso tornava-o igual a eles, àqueles demónios…Não, não podia pensar daquela maneira, pois a sua querida Airina era ela própria uma yaojin, mas da tribo dos Gemmyarkan. Tinha sido um amor proibido. Por causa daqueles Di Euncätzio, ele nunca fora capaz de lhe pedir a mão em casameno, e dar-lhe uma vida muito mais abençoada do que o de uma mulher demoníaca.

Soltou um longo suspiro.

- Peço imensas desculpas, não queria de maneira nenhuma ofender o vosso cunhado, muito menos a vós.

O perfume que saía do biombo era tão sedutor e suave que Zollin mal podia acreditar que aquela era uma mulher com mais de mil anos! A sombra do leque que a senhora trazia consigo abanou umas quantas vezes, satisfeita. O nevoeiro ainda não tinha-se desvanecido. Porém, a relva parecia menos gelada e lamacenta do que quando tinham chegado ao local.

Era como se fosse tão suave como uma nuvem. Tão sedoso quanto os biombos dourados, pintados de forma delicada, que ocultavam o verdadeiro rosto da senhora.

Ainda de joelhos, ele inclinou a cabeça num acto de pura submissão:

- Muito obrigada pela sua confiança e perdão, minha senhora, viúva do Barão Onisamatzeka.

Lentamente, a senhora pediu à rapariga que estava em cima da varanda para vir imediatamente. A seguir, esta fez sinal aos dois feiticeiros que esperassem uns momentos. Entre pequenos segredinhos em Bellante Arcaico, tanto a senhora como a rapariga faziam um murmurinho, incapaz de se ouvir claramente pelos ouvidos treinados, tanto do Mestre Ishikawa, quanto de Zollin.

Após uns breves minutos (que para Rukorou Ishikawa pareceram uma eternidade),  o rosto branco e suave de Kazue assomou por detrás do biombo. Os dois olhos azuis (da mesma cor que a segunda camada do grande e complexo quimono que ela usava, uma uwagi escura) espreitavam por detrás do leque branco. Ao virar o leque para outro lado, os olhos gelados contrastavam com a cor doce, apaixonante, húmida de dois lábios pequenos e sensuais, mordidos por dois dentes caninos e afiados, mais brancos que o rosto de mármore de esfinge arraçada de mulher nortenha Bellante. Apesar de tudo, os dentes ficavam-lhe bem, como dando um ar de deusa poderosa. De facto, Zollin pareceu ver diante de si a personificação de Nossa Senhora, a Imperatriz Melnjar.

Os olhos semicerrados eram uma característica das mulheres e homens do Norte. Mas, enquanto os olhos de Saburou Di Euncätzio pareciam ameaçadores, os da cunhada eram deliciosas melodias pintadas numa cor de lápis-lazúli.

De facto, nada no rosto da bela Kazue tinha envelhecido. Era como se ainda tivesse trinta e seis anos de idade. As orelhas – ocultas pelos longos fios de arminho que se estendiam até à neve – eram esculpturas de algodão-doce com pequenas pontas no topo, denotando o facto que ela era uma vampira Bellante do Vale Enublado.  Era uma Teyolloquani, uma bruxa Bellante.

Embora as mulheres que a ajudassem fossem muito bonitas, nenhuma se comparava com a beleza de Kazue. Zollin teve se concentrar. Não podia deixar-se enfeitiçar pelos olhos azuis de uma mulher com mais de mil anos.

Zollin estava completamente boquiaberto.

No entanto,  Rukorou Ishikawa era tão poderoso quanto Saburou Di Euncätzio. Franziu as sobrancelhas, desconfiado.

- Andais a pagar a renda à vossa cunhada com o quê, Saburou Di Euncätzio…? – Perguntou num tom neutro e frio o feiticeiro Branco.

- Tenho a ligeira impressão que não é isso que queres falar, meu caro Ishikawa…Afinal de contas, o grande comandante das Forças Especiais da Guarda Imperial Bellante jamais se exporia ao perigo no lugar mais amaldiçoado de toda a Bellanária. – A voz cínica e trocista de Saburou pigarriou ironicamente.

O jovem feiticeiro tirou do manto de guarda imperial uma taça com um pouco de Frambinam e chocolate quente. Com uma delicadeza digna de um príncipe, ele entregou a taça de barro. Porém, os seus olhos cor de âmbar brilhavam com um ar autoritário em direcção à mulher demoníaca, que abriu o leque de uma forma gelada e indignada.

- Ouvimos dizer que a tribo à qual pertence a Senhora Onisamatzeka Kazue era dotados em esculpir no vidro e no barro. – Comentou o jovem omyouji, com um pequeno sorriso. – É claro que as suspeitas não podem recair de todo sobre a viúva do respeitado Barão…

- Mas isso não significa que não queiramos saber onde é que está o filho do vosso cunhado, minha senhora.  – Acrescentou o Rei dos Feiticeiros Brancos, num tom muito sério. – Alguém da tribo dos Oni, da família Di Euncätzio, envenenou a Senhora Sacerdotisa de Melxocolatlbilar e tentou raptar o filho dela.

De repente, o vento começou a uivar, como se fosse um animal selvagem. Era tão cortante que o jovem podia jurar que era o olhar de Kazue que estava a controlá-lo!  Porém, ela não estava a olhar para eles.

A voz de um jovem criado humano acenou em direcção aos umbrais da casa infernal:

- Deveis estar a morrer de frio…O meu mestre, o Senhor Saburou pediu para vos informar que uma vez que sois mensageiros do Imperador, então sereis tratado como tal. Por favor, façai o favor de me seguir.

De facto, estava muito frio…No ermo daquele nevoeiro, tudo parecia triste, sombrio e abandonado. Era como se o Sol tivesse desaparecido.

«Acha que é boa ideia entrar naquele ninho de víboras? E só de pensar que foi ele que fez com que a pobre daquela rapariga sofresse…!»

«Enquanto eles estão distraídos comigo, põe uns selos à volta da casa.»

Zollin franziu as sobrancelhas, um pouco  surpreendido com a atitude do mestre.

«Quer que eu vá dar uma volta ao bilhar grande?»

Os dois olhos rasgados do samurai desonrado lançaram um olhar severo, mas compreensível em direcção ao rapaz.

«Sabes perfeitamente que não era isso que eu queria dizer, Zollin.  Precisamos de descobrir porque é que o filho do Hayato Di Euncätzio quis raptar a tua irmã, e ainda mais importante porque é que eles não queriam que a Senhora Claudinitiana tivesse um filho!»

O jovem cy-bata soltou um grande suspiro. Sabia que ainda era demasiado cedo para invocar um dos seus shikigami contra os demónios. Seria também uma perda de tempo: o velho Saburou Di Euncätzio parecia ser o tipo de oni que sabia os segredos da Magia Universal. E depois, quando os olhos azuis do mestre brilhavam daquela maneira, nem mesmo o Alto-Comandante Enok se atrevia a desafiá-lo. Enoque era sobrinho dos Di Euncätzio, mas só metade, uma vez que a mãe era produto de uma relação diferente do velho Yee. Tinha-se purificado ao entrar ao serviço do Imperador. Agora já não pintava o seu apelido com os caracteres Chineses, ou seja, mudara de nome. O próprio Ishikawa era chamado de “Rafael” quando estava em Suryadevnahutbal, e Zollin esforçava-se imenso para pronunciar o seu nome nos dialectos do Sul. Obedecer aos Deuses não era um trabalho fácil. Ao menos Zollin viera de livre vontade, e não fora forçado como a sua meia-irmã. Durante aqueles anos que passara em Petrybloom, ele aprendera a controlar as suas emoções.

O Mestre Ishikawa sabia que poder contar com ele. Respirando bem fundo, o jovem resignou-se e começou a espalhar um pó cor de lavanda à volta das grades esculpidas em madeira de mogno escuro que rodeavam a vivenda dos Onisamatzeka. Embora o Sol continuasse coberto pelas nuvens cinzentas de Inverno, respirava-se um ar fresco. Era a magia de Zollin. Ele conseguia fazer com que as árvores devolvessem a Losjafhden o esplendor dos pinheiros, ciprestes. Infelizmente, ele não conseguia devolver o verde às outras árvores. Muito menos o ar branco e limpo das estradas de pedra, construídas há décadas pelos Bellantes do nordeste. Alguma coisas ainda continuavam um pouco sombrias. Não havia nada a fazer pelos espíritos que outrora viviam naquelas águas calmas do Bênção.

Juntando calmamente as mãos, ele começou a pronunciar as fórmulas sagradas para formar uma barreira sagrada à volta dos umbrais da vivenda Lermmhiar. Enquanto o fazia, ele reparou que o mestre esboçava um pequeno sorriso. Estava dentro dos jardins, a acenar-lhe com uma mão. Ele sabia que estava a amarrar um nó no pescoço do próprio mestre…E se ele não sobrevivesse àquela missão…? Podiam acusá-lo de traição! No entanto, Zollin confiava no poder e sabedoria do velho feiticeiro…Confiava igualmente nas leis dos Demónios e da Magia Negra, que dizia que um bruxo jamais poderia matar os seus hóspedes! Além disso, aquela era a senhora que a meia-irmã ia tantas vezes visitar. Se Citlali confiava nela, então porque não poderia ele dar o coração a uma senhora tão encantadora...?

Com um pincel e uma caixa de bambu que trazia, sempre cheio de tinta, ele começou a escrever a pronúncia Chinesa do feitiço em vários papéis. A seguir, escolheu vários pontos estratégicos sobre os quais tinha espalhado o pó. Fez pontaria com o arco e as flechas que trazia juntamente com os seus shikigami e as várias poções, e atirou, flecha a flecha, os vários papéis. Tudo isto de forma a que a barreira fosse segurada por pontos. Tal e qual uma estrela de doze ângulos. Isso faria com que a barreira fosse mais eficaz num espaço de cerca de cento e oitenta e cinco metros quadrados. Seria precisa muita sorte para que algum demónio conseguisse entrar ou sair daquela barreira. Ou isso, ou que (ao pensar em tal hipótese, Zollin bateu contra a madeira oca de uma árvore de gingko três vezes) Hayato, Osamu e Yamellino voltassem do mundo dos mortos e decidissem ajudar a sua pobre família. Manteve-se sentado de pernas cruzados a murmurar constantemento o salmo mágico do feitiço, durante mais meia-hora, até que o brilho cor de lavanda das labaredas que rodeavam a vivenda maldita fosse suficientemente forte.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Que o Sol nunca acorde...

Daqui tifongirl...estava no deviantart como de costume quando reparei numa questão muito engraçada que as pessoas fazem quando são escritoras e querem apresentar os seus personagens:

"When and with whom was your first kiss?"  Quando e com quem é que foi o teu primeiro beijo? Nunca tinha pensado nisso em relação a uma certa personagem que eu tenho. Primeiro porque ele era demasiado velho para que eu conseguisse adivinhar, e depois porque o exercício de contar na primeira pessoa seria demasiado embaraçoso para o homem em questão. 

Porém, assim, hoje, o vento da inspiração bateu-me à porta e já não estava com problemas para descrever a cena. Posso muito bem imaginar como é que seria... Tenho andado mesmo interessada pela cultura oriental!

Culpa dele... ah, ah! 


O nome completo – Adrian Demetrius – era a mistura de nomes de vários santos, de acordo com a lei alemã, e não com a Bellante. “Demetrius” era a forma latinizada de “Deméter”, a deusa mãe da terra na Mitologia Grega. Enquanto Adrian era a forma Germânica de Hadrian “da Cidade Italiana de Hadra”. Não era exactamente o nome perfeito para um guerreiro que a Senhora Murakami queria, mas era o nome legal que os Alemães queriam. Em breve (dadas as circunstâncias em que as mulheres Alemãs da nobreza queriam tirar-lhe o filho para educa-lo segundo os princípios prostestantes cristãos) ela viu-se forçada a levar o pequeno para o Império do Sol-Nascente. Quando o jovem “Adrian-chan[1]” tinha oito anos, a mãe teve outro filho – Karl Adolf e ficou assim com um marido embaraçado por ter de explicar à sociedade alemã porque é que uma mulher de cinquenta e cinco anos continuava a ter uma barriga tão fértil. Foi por causa disso (e muito mais) que a mulher arranjou uma maneira de abandonar o jovem Kali-chan de um ano na Baviera, no meio do caminho. Adrian-chan ficara muito contente, por continuar a ser o filho preferido da “Mamã”, e por abandonar aquela terra horrorosa onde as mulheres o chamavam de mal-educado por ele pregar partidas – e que algumas até o ameaçavam de lhe bater. Passaram-se sete anos, e a “Mamã” tinha outro filho. O jovem Adrian ficou muito aborrecido por ter de compartilhar o “Casarão da Mamã” com um bebé chorão – que ainda para piorar não tinha um nome Japonês. Foi nessa altura que Adrian von Tifon queria ser tratado pelos “amigos” e pelos inimigos por Murakami e não pelo seu nome europeu. Sabia manejar a espada muito bem, e precisou menos que semanas para se destacar na Era Tokugawa como um samurai experiente. A honrada família Murakami ocultava bem a sua “raça demoníaca”, e a Senhora Yui era cuidadosa o suficiente para ensinar aos dois filhos os ensinamentos de como se comportar civilizadamente na sociedade Japonesa, seguidos por uma filhinha que nasceu em 1810.

O “Senhor Christophe”, o esposo, gostava muito mais do Japão do que a Alemanha. Ali era o patriarca e não tardou a ganhar um pouco de confiança para tentar ser um pouco mais bélico com os filhos. O jovem Martin sorria placidamente e desculpava-se pois ele estava muito ocupado nas suas lições de como ser um ninja e a forjar armas como devia ser. Adrian não era assim tão educado. Não falava uma única palavra em Alemão com o pai e forçava-o a falar em Japonês, coisa que Christoph bem que tentava dedicar-se mas era tão difícil que o filho, de uma maneira ou de outra, acabava por fazer troça do ar desolado do pai.

A Senhora Yui, uma mulher paciente e com uma natureza bondosa, ensinava o marido a pronunciar correctamente as palavras, a comportar-se para que as pessoas não pensassem que ele era “um parolo preguiçoso e idiota”, como as três irmãs da Senhora Yui o chamavam. Os maridos delas eram fortes e severos, com um porte espantoso.

O filho mais velho poucas vezes almoçava ou estava em casa, o jovem Martin Wolfgang quase que não aparecia em casa senão para comer e para dizer “bom dia” ou “boa noite”. Sobrava muito tempo à Senhora Yui para ensinar ela própria o marido – a não ser nas alturas em que tinha de tomar conta da pequena Jasmin. Sentia-se feliz pela filha e pelo marido serem assim tão simpáticos e generosos para com ela. Era uma recompensa vinda dos Deuses por trabalhar tanto na lida da casa, nos assuntos da família de samurais, e por ter de aturar os três insuportáveis cunhados.

Nessa altura, a família Murakami era pobre, uma vez que todas as irmãs e o Hyasuko Murakami tinham gastado todo o dinheiro a preparar o casamento com a irmã Yui. “Arata” vivia num bairro muito perto do bairro de prostituição de Shimabara, em Quioto. A casa abrigava a família principal Murakami: Hyasuko, com as suas duas mulheres, Shizuka e o seu marido, Musashi Makoto, Suzuki e o seu marido, e Yui com Christoph e os seus três filhos: Arata, Martin, e Jasmim. Em 1800, Arata teria os seus dezasseis anos. Era um jovem que fora obrigado pelas tias a rapar o cabelo cor de trigo queimado na frente aos treze para fazer um rabo-de-cavalo a trás. As tias queriam que ele se tornasse num grande samurai, um guerreiro que servisse os senhores feudais.

Todos os dias, ao voltar para a casa, Adrian Demetrius (mais conhecido por Arata Murakami, ou simplesmente Murakami-kun na escola de espadachins) tinha de ir comprar um quilo de arroz e de sakê e carregá-lo com apenas as sandálias de palha (era demasiado pobre para comprar as confortáveis choris de madeira com umas meias de seda). O dinheiro arranjava-lhe o tio com os seus talentos de músico e de guarda-costas de mafiosos que governavam as “casas-de-chá” de Shimabara. O quimono azul-escuro com o tigre prateado rendado nas costas era uma relíquia da família, dos tempos aúreos de Kensaku Murakami, o avô do lado da família da mãe. As espadas tivera-lhes oferecido Hyasuko. O conjunto era um pouco patético, mas sóbrio. Quando o tio lhe pousou a wakizashi e a katana na cintura, Arata ficou impressionado como eram pesadas.  Era mais uma forma de fazer com que os braços se habituassem ao peso de espadas.  

Quando Arata passava por Shimabara, as gueishas suspiravam, ao verem um rapaz com um rosto semelhante ao de uma raposa, os olhos da cor da chuva, melancólicos, mas magnéticos. Toda a gente na escola de kenjutsu conhecia a beleza exótica de Arata Murakami. Os olhos azuis captivavam qualquer um, e apesar das suas origens duvidosas (toda a gente perguntava ao jovem Murakami-kun aonde ele vivia e quando este dizia que ficava perto de Shimabara, todos arregalavam os olhos). Arata parecia ser o típico rapaz aristocrático, de fala eloquente, com um pequeno sorriso suave e sedutor, voz cristalina e pura. Desde os cinco anos que Arata gostava de tocar piano, mas como a família era muito pobre, o mestre de kenjutsu – por coincidência, era um antigo daimyo – decidiu oferecer a sua casa para este não perder a prática. Admirava a forma como o jovem Arata escrevia, falava e o seu óbvio talento não só com a espada, mas também com a arte de lançar adagas a alvos incrivelmente distantes! Uma vez, este dissera à mãe, que veio visitar a escola:

«O seu filho é um prodígio, Murakami-dōno...! Nunca vi um rapaz de origens tão humildes a manejar uma espada e a comportar-se como um verdadeiro samurai! Também tem um dom espantoso para a música e para a poesia…»

A Senhora Murakami corava um pouco embaraçada, como que para fingir o orgulho que sentia em ter um rapaz que atraía a atenção de tudo e de todos. Apesar de tudo, ela também recebia uma pequena crítica do velho daimyo. O filho adorava piscar o olho à filha mais nova do senhor feudal. Esta corava que nem um tomate quando lhe servia o chá, nos momentos em que este chegava para tocar piano. Aqueles olhos azuis e hipnóticos simplesmente punham-na nervosa.

Num dia normal como tantos outros, quando as flores de cerejeira estavam no seu auge, no jardim esplendoroso do mestre do rapaz, a filha do daimyo decidiu pedir ao jovem para que este tomasse chá com ela.

O rapaz aceitou prontamente, mas quando ia dizer os bons-dias, reparou que a sua voz já não era tão aguda e encantadora. Saiu um vozeirão de homem pela boca, o que deixou a pequena Hanako-san vermelha que nem uma cereja.

«Está a mudar de voz, Murakami-kun?» Perguntou num fiozinho de voz, depois de cumpridos os formais e habituais salamaleques.

«É uma voz arrepiante, não acha? Já nem consigo ir comprar o arroz e o sakê, porque as empregadas ficam todas nervosas.» Respondeu Arata, sombriamente, ainda com os olhos fixos no chão. Não queria parecer mal-educado diante da filha do daimyo. «Depois é a altura, não reparou que estou mais alto uns quarenta centímetros?»

«Sim, mas isso não quer dizer que não caiba na porta!» Hanako riu-se um pouco, encantada com o facto da voz de Arata “Murakami” ainda não ter mudado completamente. Era verdade que durante aqueles dois anos, o nariz dele triplicara de tamanho aos quinze, o queixo estava a ficar grande demais, e quando sorria, era como se os dentes caninos fossem maiores que os outros, mas ele continuava a ser um rapaz muitíssimo educado e bom a ouvir os problemas dela, uma jovem condenada a casar mais cedo ou mais tarde com um homem muito mais velho que ela.

Ao ver que o jovem e formoso Arata tinha desaparecido para dar lugar a um jovem envergonhado do seu próprio aspecto, Hanako indicou, com a mão livre, as flores de cerejeira.

«Murakami-kun, as coisas não podem ficar bonitas para sempre…além disso, ainda tem a espada, a caligrafia, a poesia, o piano…»  

De repente, a mão do jovem pousou discretamente na mão da jovem filha do daimyo, que apesar de ser dois anos mais velha que ele, parecia ser tão bela e inocente.

«Sim, creio que ainda há coisas que nunca mudam…!» Suspirou, como se estivesse fascinado pela cor dos lábios da jovem Hanako combinavam com as pétalas de flor de cerejeira.

«Tenha calma…!» Gaguejou a jovem, num tom ainda paciente. «Acho que é melhor o senhor falar senão ainda perco a face.»

Arata riu-se, desta vez na voz ainda de jovem rapaz. Mas foi uma risada amarga. Ao contar que fora sempre diferente dos outros rapazes, quer estivesse na Alemanha, ou no Japão, a jovem Hanako começou a ficar cada vez mais curiosa. Mas uma coisa que ele gostava muito era de apreciar os jardins do “sensei”

«Recordam-me da minha terra, lá na Alemanha…as árvores são maiores que as casas, e devia ver os lagos…Adorava molhar os pés no Verão.  Mas isto de mudar-me para o Japão é tudo culpa das minhas tias. Elas são umas víboras, especialmente a Tia Shizuka, aquela mulher que anda sempre com um cachimbo de tabaco. Apesar de não me baterem, eu tenho a certeza que têm inveja de mim e da minha mãe. Lá na Alemanha, não tinha amigos, tal como aqui. Porém, não havía criminalidade. Podia andar de um lado para o outro, tocar piano livremente, respirar e espirrar o ar puro. As minhas tias dizem-me que eu devia comportar-me mais como um Japonês, mas não posso esquecer-me da minha tília, da Mãe, e do meu Pai. Pobre pateta, ele não percebe uma palavra, e mesmo assim quer ser um rounin. Se quer que lhe diga, acho que a minha Mãe casou com ele por pena. Eu tento esforçar-me, e sei que um dia, vou ser um grande homem, tal como o meu avô Kensaku.»

Passou a tarde inteira a falar de como se sentia que queria ser um rapaz normal como todos os outros, mas como não era nem carne nem peixe (nem Alemão, nem Japonês) era sempre frio e distante para com os jovens da mesma idade. As pessoas mais velhas gostavam dele por ser obediente e leal ao trabalho, os mais novos invejavam-no. Entretanto, os seus olhos brincavam um pouco com a visão do longo cabelo de Hanako com a cabeleira presa com um pente de âmbar. Os olhos dela baixavam, ou olhavam para as flores, enquanto ambos caminhavam sobre a sombra das árvores do pai da jovem.

Curioso como era, ele esboçou um pequeno sorriso.

«Tem um cabelo tão bonito…porque é que não desprende o cabelo?»

Hanako riu-se, muito envergonhada.

«Ah, não, não me peça uma coisa dessas, Murakami-kun! Demorou-me uma hora a penteá-lo! Além disso, a minha Mãe iria ficar uma fera se me visse com o cabelo despenteado!»

Arata repentinamente começou a aproximar-se dela, com aquele sorriso brincalhão, como se ainda fosse uma criança.

«Vá lá, Hanako-san, deixe-me ver o seu lindo cabelo a cair-lhe pelos ombros…Tenho a certeza que deve ficar tão bonito como uma cascata!»

«É incorrigível, Murakami-kun!» A jovem soltou um pequeno suspiro, enquanto tirava cuidadosamente os ganchos do cabelo. Não conseguia resistir àquele sorriso e aqueles olhos azuis, brilhantes como duas safiras.

Quando finalmente ela tirou tudo que lhe prendia o cabelo, o jovem aprendiz não hesitou em tocar no cabelo dela.

«É a cascata mais bonita que eu já vi em toda a minha vida…» Disse, num tom como se estivesse enfeitiçado.

Embaraçada, ela começou a ficar boquiaberta, ao ver que o coração palpitava cada vez mais depressa. Aproveitou o facto de que estava a ficar tarde para voltarem para a vivenda do pai. Com o cabelo a esconder metade da face, ela parecia mais deslumbrante, mais encantadora. Arata inspirou profundamente o perfume doce que vinha dela. Que pena que não fosse ainda suficientemente conhecido para pedir a mão dela em casamento!

A Lua já aparecia no horizonte, a modos que as únicas coisas que iluminava o rosto de Arata eram os candeeiros que ficavam perto da entrada do jardim com a casa. Com metade do rosto oculto na penumbra, Adrian Demetrius Von Tifon sentiu duas coisas afiadas no meio das pernas, e não eram as suas espadas.

Antes que ela pudesse escapar para o quarto e despedir-se, ele aproveitou o facto de que ainda estava no jardim para encostar ao de leve a mão no queixo dela. Nem foi preciso usar o seu olhar paralisante. Hanako estava demasiado envergonhada para dizer fosse o que fosse.

Os lábios dele foram suficientemente rápidos para lhe darem um beijo intenso e molhado.

«Não consigo resistir aos teus lábios, Hanako-chan!» Sussurrou Arata, desta vez naquela voz um pouco mais grave, o que provocou um calafrio no corpo da jovem. Era como se alguém invísivel lhe tivesse roubado o seu primeiro beijo. 

«Por favor…!» Murmurou a jovem, espantada e de olhos arregalados. «É melhor ir-se embora, Murakami-kun

O jovem ajoelhou-se, um pouco conformado. Afinal de contas, senão desaparecesse dali imediatamente, o nome da família podia ficar ainda mais arruinado do que já estava. Ainda bem que as pessoas de Quioto já se tinham esquecido de Kensaku Murakami.

«Como queira, minha princesa, peço imensas desculpas se a incomodei.»

«Não faça pouco da minha cara!» Respondeu Hanako, indignada com o comportamento um pouco infantil do jovem aprendiz.

«Mas eu estou a pedir-lhe desculpas como deve ser: para mim, a menina é como se fosse uma princesa!» Disse Arata, num tom verdadeiramente cortês. «Bom, faz-se tarde, e eu ainda tenho de memorizar os poemas do Mestre Samiel em casa. Muito boa noite, Hanako-san

«Que poemas?» Hanako, que não era uma rapariga de ficar rancorosa, lançou um olhar surpreendido para o jovem aprendiz de samurai.

«Se Vossa Senhoria me permitir, eu posso traduzi-los para Japonês e mostro-lhos quando quiser.»

Quando os pais de Hanako chegaram da sua visita anual às cerejeiras, a jovem estava com o cabelo surpreendentemente aprumado. Não havia um único sinal de que alguém tinha tocado no cabelo dela. 

Foi assim que Adrian Demetrius Von Tifon conseguiu arranjar contactos entre as futuras altas esferas do governo Japonês. Todas as semanas, ia a casa do daimyo para tocar piano, melhorar as suas habilidades com a espada, e especialmente, recitar os poemas e histórias da Bellanária. O daimyo era primo distante do clã dos Matsudaira, que detinha várias terras no Japão.

No seu décimo terceiro aniversário, a Senhora Yui tinha-lhe dado uma caixa de prata com uma pequena chave. Nessa caixa, o jovem colocara uma mecha de cabelo de Hanako, e do seu belo incenso que mais se assemelhava a uma bela tarde de Verão. Tal como na história do Caçador de Almas, ele prometeu ser um grande feiticeiro, ou pelo menos um guerreiro poderoso e influente. Se isso não fosse possível no Japão, talvez pudesse vir a ocupar o tão desejado lugar que detinha o pai como Duque na Bellanária.



[1] Diminutivo ou honorífico que se usa em Japonês quando se fala com pessoas mais novas ou com crianças. Também é usado com as pré-adolescentes e entre as raparigas novas. No entanto, também se usa com rapazes pequenos.