segunda-feira, 31 de março de 2008

«...Eleonora, um espinho na bota...» (1ª parte)


Samiel apenas tinha medo duma coisa: que Eleonora fosse tão corajosa e esperta como ouvia dizer pelos seus esbirros na Floresta de Cristal. Ele sabia como meter medo a raparigas mais novas do que a própria Princesa, mas se por acaso alguma delas fosse mais inteligente e traiçoeira, ele punha-a logo de lado e matava-a num abrir e fechar de olhos. Esse era o truque do implacável Assassino do Amor; seduzir e destruir, o seu modus operandi, por assim dizer. Se uma rapariga se demonstrasse demasiado astuta para não se aperceber do que é que ele lhe podia fazer, nesse caso, ele a mataria. Era a única forma de escapar a uma infeliz prisão.

E, embora tivesse o conhecimento que Eleonora era muito cabeça no ar, ele estava receoso de que ela arrruínasse os seus planos. Não! Isso nunca! Ele iria mostrar àquela rapariga quem realmente mandava na Atlântida.


Ao pensar que tudo o que fazia estava, redondamente certo para a sua mente distorcida, esboçou um sorriso compreensível, como se perdoasse a si próprio por pensar em tal disparate.
Depois, ao passar uma das mãos pelo pêlo áspero do tigre num gesto carinhoso e raro, retomou a conversa, o que fez os dois guerreiros estremecerem.
Ainda absorto nas carícias que fazia ao seu animal, não deixava de erguer o olhar para os dois rapazes, mostrando uns olhos particularmente ameaçadores, aquele sorriso pessoal desaparecera por completo para dar lugar a um olhar bastante severo e amargo.
- Estou só a dar-vos uma versão diferente de como os acontecimentos se desenrolam entre as classes. Não tenho quaisquer remorsos acerca de trazer para a Atlântida males então desconhecidos para a maior parte da rude populaça, – começava a notar-se na voz de Samiel uma ponta de fúria. – Por isso, não preciso de atirar as culpas para cima de ninguém. Só acho que vós, Deuses devíeis estar mais alerta quanto aos malfeitores que infestam este país. Aqueles idiotas dos Demónios são mais estúpidos do que um grupo de burros a olharem uns para os outros. Perigosos, mas estúpidos. E vós sois duplamente ignorantes ao pensar que podíeis deixá-los por aí á solta.
Samiel soltou um suspiro sarcástico, seguido de uma gargalhada trocista e acrescentou cinicamente:
- Enfim! Se eu fosse a Neptuno, começava a prestar mais atenção aos demónios e bruxas que andam por aí no seu reino, pois comparado com eles, sou um santo!
Anúbis, farto de tanta conversa e lábia do Assassino do Amor, apontou ousadamente de súbito o seu machado flamejante ao pescoço do feiticeiro, com um ar bastante sério.
O jovem deus egípcio desconfiava que Samiel era o único responsável pelo desaparecimento de Eleonora. Afinal, porque razão haveria de confiar nele?
Há um mês atrás, ele tinha-o enganado e a fazerem o trabalho sujo de apanharem Claudinitiana. Por outro lado, o bruxo era a criatura mais perigosa de toda a Atlântida. Não haveria nada a temer com um feiticeiro negro ao seu lado. Mas, tinha que ter em conta que Samiel tinha, para além de outras mais alcunhas, o apelido do “Chefe da Camuflagem”. Com o Assassino do Amor, nada era verdadeiro!
Numa posição de ataque, ele lançou um olhar de menosprezo para o bruxo.
- Basta de paleio, seu louco! – Exclamou ele ameaçadoramente. – Ou dizes o que é que fizeste à princesa, ou acabas como batatas fritas para demónios!
Samiel, nada impressionado, fitou friamente o atacante nos olhos e, calmamente, pousou a cigarrilha num cinzeiro.
A arrogância habitual do bruxo começou a trabalhar instantaneamente, mas não a demonstrou com gritos ou insultos, como normalmente os seus homens faziam. Não, ele preferia ser mais gelado do que um iceberg e manter a dignidade que ainda lhe restava.
Se tivesse que haver sarilhos, certamente não seria o grande Mestre Rwebertan Samiel Di Euncätzio que os iria ter, mas sim aqueles dois rapazes insensatos. Lançou o olhar mais gentil e brando que conseguiu arranjar e, num gesto diplomático, mas muito avisador, tentou falar com os deuses duma forma pacífica, estendendo as mãos para cima, afastando discretamente a lâmina do machado da sua garganta com as garras compridas e pálidas.
- Pousa isso, rapaz! – Ordenou. – Ainda acabas por te magoar...
Mas, antes que acabasse a frase com dois sentidos, encontrou uma flecha encostada ao seu nariz, com Indra, furioso, segurando nervosamente o arco.
- Dizei-me onde está a minha Eli imediatamente, por Trimurti, senão ides ter uma terceira narina para o resto da vida! – Cortou ele, num tom irritadiço.
Um pouco contrariado, Samiel encolheu os ombros inocentemente, e, a olhar para o tigre, que agora rugia num tom de clara ameaça para Anúbis e Indra, ele abanou a cabeça teatralmente, e murmurou baixo ao felino para se acalmar, que o “papá” ia só ter uma conversa com aqueles dois senhores.
De mãos no ar, ele mentiu com um ar aparentemente honesto aos dois deuses que vira, enquanto apanhava os espólios da caça, um demónio azteca que ele conhecia como Astilmutchan, o Senhor das Profundezas, a levar uma rapariga inconsciente. Na sua bizarra versão dos factos (inventados, é claro), ainda tentou perguntar indirectamente ao demónio quem era aquela beldade. «...porém, o imbecil nem falar convenientemente sabia, doravante que não tive a oportunidade para descobrir se ela era realmente a amorosa Eleonora.» Disse ele, fingindo-se com compaixão. «Pobre princesa... Quem sabe se talvez ela já não esteja entre os anjinhos...!» Insinuou ele com um sorriso escarninho e trocista.
«Bruxo mentiroso!» Vociferou Indra. «Ela não pode estar morta...Não! A minha prometida Eli não pode...»
«Cuidado, Indra!» Avisou Anúbis com um olhar incriminatório para o senhor daquele castelo. «Este tipo de bruxo é tão venenoso que até polui o ar que respira. Como é que tu és capaz de dizeres uma barbaridade dessas à frente do noivo de Eleonora?! Isso não pode ser verdade, Eleonora sabe muito defender-se sozinha de tipos pirados da cabeça como tu!»
O cruel feiticeiro fingiu-se admirado e, afagando ternamente a cabeça do seu tigre, semicerrou os olhos, como um cão apanhado em falta.
«Oh, peço imensas desculpas!» Exclamou num tom zombeteiro. «Pobre infeliz, não fazia a menor ideia...Então já marcou a data para serdes queimado vivo?
[1]»
Indra ainda queria enfiar o seu tridente pela goela abaixo do bruxo, mas, uma vez que a violência não resolve nada, decidiu tentar convencê-lo a ajudar na busca da pobre Eli.
Anúbis e o hindu disseram a Samiel que não faziam a menor ideia de como combater tal criatura, nem qual era a verdadeira forma desse demónio, mas que caso ele não os ajudasse, iriam contar ao Palácio das Reuniões que ele, o poderoso e temido Mestre Rwebertan Samiel Di Euncätzio podia ter alguma coisa a ver com o desaparecimento de Eleonora, uma vez que tinha estado no local do rapto à mesma hora a que o demónio esteve.
Foi aí que o Assassino do Amor revelou uma grande perspicácia e sabedoria acerca de Demónios antigos e a melhor maneira de os derrotar.
«Astilmutchan pode disfarçar-se de várias maneiras, mas as mais populares são um bode, um elegante salmão falante e a dum corvo gigante. O seu verdadeiro aspecto horripilante é a dum porco com o rosto dum cachorro com raiva. Adora enlouquecer raparigas da idade da princesa com a sua música ensurdecedora que toca numa guitarra! Ele vive nos Alpes das Sereias, juntamente com o seu harém de mulheres doidas, onde, uma vez por ano, arranca o coração duma coitada. E, mesmo assim, estão vivas!»
Curiosos e aterrorizados com o que Samiel lhes tinha contado, imploraram para que este os ajudasse sem demora, por Deus, que não queriam ver a querida Princesinha louca.
[1] Samiel estava a referir-se, claro, à tradição dum sacrifício feito em certas zonas da Índia, onde, quando o noivo ou a noiva morrem antes do casamento, o outro irá ser queimado vivo com o defunto.

sexta-feira, 21 de março de 2008

A arquitectura do Castelo Negro...

Indra e Anúbis nem tinham reparado na magnitude da morada de Samiel quando entraram pelas portas desta.

Estavam demasiado assustados e nervosos para apreciar a arquitectura bizarra e fascinante do castelo.
As portas eram abertas por um mecanismo tipicamente oriental fazia rodar todas as portas do castelo na horizontal e – e não com dobradiças – sempre que qualquer indivíduo tocava nelas. Resumindo, o castelo era uma autêntica mistura de estilos completamente diferentes, excluindo o exterior, que era gótico, com as monumentais fachadas do edifício escuro eram lindamente esculpidas com motivos acerca da magia: fadas, unicórnios, feiticeiros, dragões, grifos, serpentes e tigres guardavam todas as criaturas inferiores; ou seja, as Fadas, os Duendes, os Demónios, Gigantes, e Demónios, as classes primitivas. Os Deuses davam bênçãos bem do alto dos pedestais mais altos, onde se encontravam os cinco pináculos do castelo feito Yerthal, um mineral preto como o carvão, bastante quente e confortável que os bruxos costumavam usar para construir as suas casas. Algumas alas e divisões eram construídas com Uernal, um mineral branco, muito semelhante ao Yerthal, o que fazia muitos partes da casa ter-se a sensação de ver tudo a preto e branco, se não fosse os tons de sangue vermelhos e quentes que Samiel mandara pintar em algumas paredes e tectos. O Assassino do Amor era louco pela cor do sangue, dava-lhe uma excêntrica sensação de prazer, a cor que, para alguns era o símbolo da luxúria e paixão. Também gostava das misturas entre o preto e o branco, o azul e o prateado. Como ex. Chocolateiro, era um artista com um sentido de estética bastante fantasioso, e assim sendo, Samiel sabia quais eram os pigmentos certos para transmitir loucura (amarelo), esperança (verde), elegância (preto), pureza (branco), profundidade (azul-escuro) e poder (vermelho). Também conhecia um pouco de psicologia, talvez o suficiente para conseguir aterrorizar, seduzir, ou fingir-se sincero para qualquer um. Tinha um olfacto apurado, gostava de boa música, escrevia e falava com uma eloquência impressionante. O seu génio e gosto pelo requinte e obsessão possessiva pela perfeição não deixava de espantar qualquer um que viesse ter ao castelo. Qualquer bruxo se sentiria feliz num castelo como aquele, mas Indra e Anúbis não eram bruxos, mas sim deuses. A atmosfera do orgulho e da felicidade excessiva, sublimando assim a ideia do mal e do errado, não eram bons ideais para os Deuses. Os Deuses gostavam da beleza humilde e simples, pois aquilo era demasiado trabalhoso, até para eles. “Diz-me aonde moras e dir-te-ei como és” aplica-se especialmente às classes da Dimensão Mágica.
Era óbvio que Samiel estava em pensar em outra coisa que não a conversa com os outros deuses ou a arquitectura da sua própria casa.
Fumou elegantemente um pouco mais do tabaco, como se quisesse expelir todos os seus pensamentos sob as ondas azuis-escuros provocadas pela sua respiração gelada.
Estava a meditar porque razão tivera mandado Jerininantus pagar ao demónio para que ficasse de boca calada quanto ao “salvamento” de Eleonora do Reino das Nereidas. Por poucos momentos, esboçou um sorriso malicioso. Fora relativamente fácil manipular o demónio, só esperava que a nereida que induzira Eleonora não fosse considerada mais uma vítima nas suas garras. Um dos seus dedos acariciou suavemente os pêlos farfalhudos do tigre, enquanto pensava na forma de capturar a Princesa Eleonora. Não fora ele quem a estupidamente a envenenara com ervas tóxicas, mas sim os seus melhores diplomatas grifos. «…É claro que não…», não gostava de sujar as mãos com mulheres daquele tipo, no entanto, alguém tinha de fazer aquele trabalho infame de caçar mulheres como aquela nereida. Apenas ele podia fazê-lo: matar uma mulher naquela altura era como profanar um templo sagrado. Nenhum homem se atrevia a fazer mal a uma mulher, apenas Samiel tratava o homem e a mulher como semelhantes, mas isto não quer dizer que este tivesse pena de abusar delas, não. Ele não sentia quaisquer remorsos pelo que fazia, tal como não sentiu qualquer pena por maltratar Eris. “Eris…” O próprio nome da antiga amada soava para ele como uma doce brisa nos ouvidos, mas também como um lúgubre aviso, uma sombra do seu antigo aspecto, duma memória cruelmente apagada pelas areias do tempo, um triste espectro a vaguear pela sua mente infeliz. Depois da morte daquela deusa que ele tanto prestava homenagem, sentiu-se na obrigação de proibir os seus homens de alguma vez mencionarem o nome. O bruxo sentia que era seu dever ser assim frio (nunca mais amar alguém verdadeiramente em toda a sua vida), punir todos aqueles que, segundo as suas perspectivas, eram indignos de ter o privilégio de viver, e, por outro lado, achava completamente injusto que as mulheres não podiam ser tratadas duma forma tão pouco imprópria dos deuses, mas que estas também deveriam aprender a não desafiar a autoridade do homem. A sua mente distorcida trabalhava duma forma quase incompreensível ainda para um bruxo experiente. Umas vezes bom e amável, outras frio e malvado, Samiel não era nem mau, nem bom.
Embora detestasse Neptuno, adorava as filhas deste, e sempre as desejara conhecer: gostava de crianças, mas duma forma um pouco para o pedófilo.
O seu contraste pessoal ia de odiar e ignorar perfeitamente as leis do Palácio das Reuniões quanto à Magia Negra até respeitar prontamente os códigos mágicos de nunca ferir os inocentes.
Ele também não defendia o ser masculino, mataria um homem com a mesma frieza e crueldade que assassinaria e violaria uma mulher.

sexta-feira, 7 de março de 2008

O Encontro (2ª Parte)


Samiel, indiferente àquela dor toda, puxou elegantemente duma cadeira, e, com um sorriso irónico, encheu a sua própria taça doutra bebida.
Ambos sabiam como era de importância capital que encontrassem a Princesa Eleonora o mais depressa possível.
E Samiel também sabia que a quarta filha de Neptuno tinha desaparecido, na verdade, era isso mesmo que em que ele estava a trabalhar.
Encostou-se, confortável na cadeira, e, enfrentou os dois rapazes com um semblante geralmente curioso.
- Não se façam de comedidos. Sentem-se, por favor. – Disse com um ar convidativo e sinceramente hospitaleiro. – A que devo a honra de acolher dois talentosos guerreiros como Vossas Senhorias?
Anúbis foi o primeiro a recostar-se passo a passo na sua cadeira e bebeu precipitadamente dum só gole a aguardente, que lhe fez arder a garganta duma forma quase fatal.
Não estava habituado a bebidas tão fortes como aquela, a única coisa que bebia no Egipto era vinho branco.
- Se me permites, Assassino do Amor, nós precisamos de ti para um tipo de....demanda. – Disse ele roucamente.
O feiticeiro negro fingiu estar surpreendido, com um brilho de mesquinhice nos olhos.
Com as garras pousadas nos braços da cadeira, ele tamborilou desinteressadamente com os dedos no veludo cor-de-vinho da cadeira.
- Ah sim? – Murmurou com um tom escarninho. Depois, mudou para uma voz normal – Bom, eu adoro desafios, além do mais que eu ainda não fiz a minha boa acção do mês, não concordam?
Um silêncio de cortar à faca percorreu o salão rectangular com um tecto arqueado e alto, de forma a que a única coisa que conseguissem ouvir eram os miados inactivos do Tigre da Escuridão, que, ocasionalmente, bocejava, e, podia-se ver as grandes presas daquele formidável animal. O Tigre da Escuridão tinha, aproximadamente, dois metros e trinta de comprimento, e, com as suas riscas pretas e brancas, ele era, talvez, o único amigo de Samiel
A seguir, com um ciciar arrepiante, chamou o elegante felino para o pé dele.
Com uma mão a segurar no Frambinam e a outra a dar festas ao tigre, ele acrescentou num tom arrogante e suave, com os olhos verdes a brilhar funestamente:
- Eu sei do que é que estão à procura. De qualquer maneira, o demónio que levou a nossa adorável Princesinha é demasiado estúpido para a matar.
Indra não dizia nem uma palavra, estava demasiado assustado para falar fosse o que fosse. A princípio, quando entrou naquela sala, ainda queria dizer umas quantas verdades ao Assassino do Amor, mas, quando viu os olhos ferozes do animal ao pé de Samiel, decidiu não pronunciar uma única palavra. Era lógico que, aos olhos do jovem deus, aquele bruxo fosse um demónio por si só, mas um demónio terrível. Para o príncipe hindu, Samiel assemelhava-se a Ravana, o falso, maléfico e imortal Rei dos Demónios naqueles tempos antigos.
Por isso é que tinha tanto medo do mulherengo feiticeiro, cuja personalidade era tão parecida com a do demónio hindu.
De súbito, a pergunta que tanto o atormentava veio, naturalmente, como se já a tivesse ensaiado:
- Senhor, perdoai-me a impertinência, mas...Sois um demónio? Para conhecer tanto acerca deles e ter tantas mulheres à sua...
Mesmo antes que Indra terminasse a questão, o bruxo soltou uma gargalhada aterrorizadora.
- Não! De forma alguma! – Disse ele, rindo-se. – Na verdade, conheço alguns demónios, mas nunca em toda a minha vida, convertia-me num membro daquele povo horroroso! Os Demónios são criaturas loucas e extremamente perigosas, já tive alguns problemas em lidar com eles. Perturbadores e travessos, são ainda piores que as Fadas. Não é que eu não esteja seguro no rasto de Ravana, mas, uma vez que somos, ambos, de forças e carácter iguais, não nos damos ao trabalho de combatermos um contra o outro. Odiamo-nos mutuamente, contudo, não somos, propriamente, inimigos mortais.
- Não achas que essa é uma atitude bastante cobarde da tua parte? – Instigou Anúbis chateado. – Mas é claro, culpar os demónios pelos teus crimes é uma saída relativamente fácil. Afinal, sempre foi assim que te safavas de todas as tuas trapaças e mentiras: incriminavas os outros pelas coisas que tu tinhas feito. Sempre foi assim, não achas?
O feiticeiro tirou do manto uma boquilha prateada, com lindos desenhos célticos de magia negra e, acendeu um rolo de papel com um pouco do hálito ardente do seu animal de estimação, e pôs a cigarrilha na boca, fumando com requinte.
Recostado na cadeira, soprou pacientemente anéis de fumo, e, na imensidão daquele silêncio podia-se ouvir a sua voz quase átona, muito aguda e metálica a fazer pequenos assobios, tais como sibilares duma cobra. A sua voz, fria e invulgar, faria com que qualquer um congelasse de medo. Contudo, durante alguns minutos, fez uma curta pausa para apreciar o sabor do tabaco na língua invulgarmente bifurcada.

Anúbis estava um pouco apavorado a admirar o sítio onde o Assassino do Amor vivia. Contemplou plenamente o espaço, e suspirou, com ainda o sabor do álcool e de framboesa na garganta: lembrava-lhe os beijos arrebatadores de Racel. “Linda e perfeita Raquel”, como lhe chamava Anúbis.
Como ele desejava que a segunda princesa mais velha de Neptuno estivesse com ele. Anúbis e Raquel eram grandes amigos, desde crianças, e o jovem infante Deus sempre mostrara uma atracção por ela. Tinha um grande receio que Samiel a roubasse dos seus braços, mas o velho bruxo não queria nada com fadas experientes. Então, o egípcio limitou-se a olhar para o lugar onde estavam. Primeiro fixou o seu olhar em Samiel, que agora, alheado do mundo de todos, chupava de forma silenciosa o pó azul-escuro para depois o soprar elegantemente, formando através do fogo que estava pendurado no meio do cigarro um fumo quase irrespirável. Talvez fosse o efeito da droga que o bruxo fumava, talvez fossem os próprios medos de Anúbis, mas o jovem deus sentia um grande vazio na sua mente, como se alguém lhe tivesse arrancado todos os sentimentos doces e bons da vida, incluindo Raquel.
O espaçoso laboratório onde Samiel trabalhava, construído sob um estilo predominantemente gótico e modernamente manuelino tinha janelas grandes de pedra onde tinham sido decorados com cortinas vermelhas a condizer com as formas bicudas das janelas do tamanho de mísseis, era sustentada por arcos em ogiva, sob os quais os anéis de fumo da cigarrilha se elevavam até a uma altura espantosa. Aí, desapareciam como meras miragens no meio dum deserto escuro. . Nessas ilusões azuis-escuras e profundas, o rapaz ficou de boca-aberta quando jurou ver Raquel ou uma rapariga muito parecida com ela a dançar sensualmente uma coreografia provocante para um bruxo divertido. Seria o Assassino do Amor tão insaciável de carne feminina?...

As formas pequenas e esguias do fumo misturavam-se na cabeça de Anúbis como um gás tóxico!...