terça-feira, 24 de julho de 2012

Perto da cerejeira no Verão

Uma pétala cai no meio do lago perfumado,
Lago dos teus olhos,
Ao ver os dourados folhos do vestido amado,
Bela flor de cerejeira,
Tão perto e tão longe,
Está o meu amor monge,
Amor perfumado de macieira,
Só para  ti, querida moça gracejeira...!

Perto da cerejeira,
Sinto-te mais perto da ceifeira,
Do que nunca, linda cantadeira...

O meu coração é tão humilde, pobrezinho,
O meu coração amolece-se diante do teu olhar,
Com um pequeno alaúde, já velhinho,
Confesso aquilo com o qual não te posso falar!

Perto da cerejeira,
Sinto-te mais perto, fico como o pessegueiro,
No tempo da seca, o pobre amante cantadeiro! 

Pequena camponesa, sempre que te vejo a trabalhar,
Pequena camponesa, sempre que cheiro o teu perfume,
Vem-me à boca uma sensação de cantar,
Mesmo que respondas com azedume! 

Perto da cerejeira,
Sinto-me como se tocasse nas tuas costas de flor,
Não é ilusão, é uma sensação agridoce, não é quase dor...!

É como a tangerina, 
Tem um sabor sumarento e cremoso,
São assim os teus lábios de menina,
Tal como um pastel delicioso! 

Perto da cerejeira, 
Sinto-me cada vez numa doideira, 
O que é que me fizeste, bela e simples ceifeira...? 

terça-feira, 10 de julho de 2012

Os chocolates não tão amargos... (parte I)


Deixem-me contar-vos a história sobre como Eris descobrira a identidade dos dois irmãos do que seria anos depois o temível Assassino do Amor: nesses tempos, Saburou Di Euncätzio era para além de um grande poeta, o músico mais talentoso da família a seguir a Samiel. Sabia tocar o alaúde Chinês Ruan como ninguém e a sua voz podia igualizar à de um brincalhão macho de uma Kinnari, o que já era muito para um oni. Em novo, gostava de pregar partidas às transeuntes humanas Bellantes que passavam pelo bairro Chinês, começando a tocar e a cantar sob o disfarce de estar invisível. Quando a sua voz atingia um certo nível, era capaz de imitar perfeitamente a voz de uma mulher, trocando o barítono por um doce soprano com um sotaque Chinês, ao cantarolar fluentemente em Bellante as antigas canções da Bellanária.

Ora, um dia, ao ver que Eris passava discretamente pela loja onde morava a famosa família de chocolateiros, pasteleiros e músicos, Saburou começou a pensar consigo:  

«É esta a princesa com quem o meu Irmão mais Velho quer casar…Se eu o ajudar a conquistar o coração de Sua Majestade, o Imperador e tio da menina, talvez o meu irmão me recompense com um terço do valor do tão afortunado dote! E talvez consiga ter uma das belas aias de Suryadevnahutbal para mim.»

Decidido a fazer de intermediário entre o irmão e a família da princesa, Saburou seguiu a princesa até ao grande distrito imperial e quedou-se ali, à espera que se desse o render da guarda. Pois ele sabia que mal os soldados humanos se pusessem em sentido, se daria o soar das duas badaladas da alba, o que significava que as defesas espirituais da muralha que rodeava os palácios da família Imperial enfraqueceriam devido ao facto que as duas horas da manhã não serem regidas pela Deusa Bilafassabnsair ou por outra deusa qualquer que protegesse as aias e as nobres senhoras da corte imperial.

Esperou uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito horas, até que o render da guarda aconteceu. Oculto dos olhares humanos e atentos dos sentinelas através dos seus poderes de invisibilidade e astúcia, Saburou conseguiu ler os pensamentos dos guardas. Pelos vistos estava com sorte: tanto a dezena do lado sul como a dezena do lado norte estavam com sono. Tinham feito o turno das outras oito horas do dia anterior, e pareciam ter-se esquecido de tomar uma bebida a que chamavam de “Xocolatl ke Tareamaeqal”, que pelos vistos, dava-lhes energia para se restabelecerem das noites pesadas e continuarem a vigia.  

Aproveitando esse golpe de sorte, Saburou dedilhou umas quantas notas no seu alaúde, e todos os guardas das portas do Norte de Suryadevnahutbal adormeceram profundamente. Com a maior das facilidades, voou e atravessou a muralha de trinta metros de altura. Ao aterrar suavemente nas ervas frescas, reparou que estava nos jardins de Sua Alteza Divina, a Imperatriz. Era fácil reconhecer a fénix esculpida em alabastro perfumado com baunilha numa fonte de água limpa e cristalina. A fénix era o símbolo máximo da Imperatriz, não só na China, como também no Japão. E mesmo em frente, estava o pavilhão com escadas de marfim branco onde dormia a mulher mais poderosa de toda a Bellanária. Claro, só podia ser mais do que lógico que os aposentos da figura feminina humana puramente divina estivessem virados para o norte.   

Quanto ao pavilhão em si, era uma maravilha de sítio, fresco, coberto por cortinas de veludo para não deixar entrar os insectos à noite. As persianas de madeira estavam decoradas com desenhos da trisavó da Imperatriz a segurar um lótus branco sob a luz do luar. Os telhados pontiagudos da cor do sangue humano, obra-prima do pavilhão impediam a ténue chuva de Verão de entrar pelos aposentos de Sua Divina Alteza. A luz fraca e trémula de pequenas lâmpadas de bronze brilhavam no silêncio perfumado de flores gentis e murmurantes. Era quase como se a Imperatriz estivesse a dormir sob o mesmo céu estrelado e silencioso do Norte.

Sabendo que a figura feminina da Imperatriz se ocultava numa túnica espessa de veludo da cor dos pequenos insectos picantes que saltitavam nos bosques do centro da ilha, mais para se resguardar de qualquer guarda ou nobre promíscuo do que propriamente de um demónio, o talentoso filho de Uarasaki ajoelhou-se (embora ninguém o pudesse ver) e aguardou até que as açafatas retirassem o biombo após o banho ritual.



Conseguia ouvir até o mais tímido dos risinhos sonhadores das adolescentes, sem saberem que havia ali um homem oculto na escuridão a observá-las. Não podia vê-las com tanta nitidez, mas os ouvidos e o nariz de um demónio normalmente são mais apurados do que o de um humano. E o nariz de Saburou era atingido por uma variedade requintada de odores preciosos. Ora vinham das tranças sedosas e encaracoladas das pequeninas, ora da própria imperatriz. O roçar de saias compridas que chegavam a fazer mais barulho que as sandálias de couro, o dialecto refinado, doce e complexo que os Bellantes do palácio das Reuniões falavam, cheio de metáforas e de duplos sentidos, era um bombom recheado de sons agudos e adoráveis, quase como que mergulhados em caramelo de arroz e framboesa. Se houvesse uma sobremesa para descrever a língua das aias, esse seria constituído de caramelo, arroz e framboesa. Nada mais.



Ainda brincaram um pouco mais com a sua língua de elite longa, cremosa e com um sabor digno de um creme de manteiga com ovo e arroz, contando à Imperatriz um sem fim de coisas que se passavam na grande capital, a respeitada Cidade dos Deuses. Saburou podia ficar horas a fio a ouvi-las, sem perceber nada do que elas diziam, pois achava a língua tão curiosa e estranha aos seus ouvidos que quanto mais escutava as vozes das fadas e das raparigas humanas, mais engraçadas as achava.

Passada meia hora, elas retiraram-se, deixando apenas o seu sabor a malmequer. Satisfeito com a sua pesquisa, ele tirou o chapéu bicudo e começou a fazer aquilo que melhor sabia fazer: surpreender uma mulher humana. As mãos de um bruxo não são só feitas para criar magia. Também servem para criar mil e um milagres. A sua música nunca fora tão cativante ou tão inspirada como era naquela noite: ao ter ouvido as vozes das açafatas, ele percebera qual seria o tom perfeito para encantar o coração da Imperatriz.  Enquanto batia compassadamente com o pé, adicionava um acorde ou outro ao sem número de notas que dedilhava harmoniosamente.

Lentamente este feiticeiro demoníaco acompanhou o alaúde com a voz, falando no Bellante que se falava nos bairros da Capital. A Imperatriz Melnjar, impressionada com o talento daquele instrumento que parecia tocar sozinho aos seus olhos, ficou ainda mais assombrada quando aquela voz exótica, mas ao mesmo tempo masculina acertara em cheio nos seus ouvidos.  Era como que uma brisa de ar puro, vinda de fora das muralhas de Suryadevnahutbal, que a fazia mais leve do que uma pluma. E sem dúvida aquela voz tinha um talento impressionante com a poesia das gentes humildes da Cidade dos Deuses. A única coisa que ela nunca tinha ouvido era o som daquele instrumento tão esquisito.

Fascinada com tal prodígio, ela levantou-se e perguntou:

- Quem está aí?

Foi então que o jovem bruxo revelou-se perante os aposentos de Sua Divina Alteza, fazendo com que o feitiço que todos os demónios têm a correr nas veias perdesse o efeito. Com a sua silhueta alta e elegante, ele apresentou-se de joelhos com o alaúde atado nas costas.

- Muito boa noite, Vossa Divina Alteza. – Cumprimentou Saburou em Bellante fluente. – O meu nome é Di Euncätzio Saburou, terceiro filho do grande Di Euncätzio Yee e da Senhora Uarasaki. Sabe aquela chocolataria e pastelaria no Bairro Chinês, a umas centenas de degraus daqui?

A Imperatriz, surpreendida com o facto de que o delicioso chocolate quente que a levava todas as noites a encantar e a deliciar-se com o marido nos aposentos deste perto da Muralha Sul, que vinha de um bairro tão estrangeiro e tão repleto de descendentes de gente que ela não queria ter nem sequer o mínimo contacto de uma carta pelo início do ano, abriu de rompante o leque num gesto severo.

- Que horror! – Exclamou ela, repugnada. – Pois aqueles chocolates maravilhosos com uma farinha de baunilha são confeccionados por feiticeiros adeptos das artes negras?

- Oh minha senhora Imperatriz…! – Disse logo Saburou que para além de talentoso com a poesia e a música, era também bom na arte do bem falar e sabia fazer do preto branco. – A minha mãe só põe um pouco de pó de cana-de-açúcar e algumas ervinhas picantes lá da nossa terra para que o chocolate não fique tão negro. Isso será Magia Negra que se veja?

E, com um gesto discreto e requintado digno do mais educado dos príncipes, ele retirou de dentro do manto de pele nortenho um frasco com chocolate a ferver. 

- Vede com os seus próprios olhos, como apesar de tudo, beber o "sangue dos Deuses"... - Enfatizou a palavra, quase num tom irónico, antes de fazer uma pausa. - Não é pecado nenhum para a alma humana. 
 A Imperatriz arqueou as sobrancelhas, por detrás do leque. Não sabia se havía ou não de aceitar tal presente. Afinal de contas, os Di Euncätzio eram para todos os efeitos, os fornecedores oficiais do Imperador de pastéis e outras delicadezas para as bocas ávidas e inocentes das damas das corte.