terça-feira, 26 de maio de 2009

"Um mundo tanto de escuridão como de luz"...


A Bellanária, ou melhor, o antigo “Império Bellante”, é composto por várias ilhas espalhadas no oceano atlântico, apenas ocultas ao olhar de quem não acredita, cada uma com o seu próprio clima, vegetação e fauna. E tal como cada ilha tem a sua identidade e étnica e dialecto próprios, cada classe que lá habita vive a sua vida de acordo com os princípios estabelecidos pelo Palácio das Reuniões, o órgão legislativo e representativo supremo de todas as ilhas. Isto significa que nem o Rei dos Bruxos, nem a Serpente de Fogo, supostamente, podem contestar as leis que lá se redigem. Tal como disse anteriormente, todas as classes – com excepção dos demónios e dos miseráveis, os humanos mais “miseráveis” segundo o código constitucional da lei escrita pelos deuses, é uma coisa muito complicada – podem eleger ou fazer representar pelos seus membros mais capazes. As criaturas místicas, as Fadas, os seres Humanos, os Feiticeiros Brancos, os Nobres e os Bruxos têm os seus próprios representantes, e a palavra deles costuma ser a própria lei na terra deles. Acontece que agora, a Grande Ilha está dividida em vários sectores regionais: o Vale da Morte e Cyborg Town estão representados, na maioria, por bruxos e demónios, o que de facto não devia acontecer. Outra coisa muito importante a referir é que nem sempre os Deuses são assim tão divinos. É verdade que já houveram deuses – e estão muitas vezes referidos em outras “mitologias do mundo dos mortais” – que foram conhecidos pela sua bondade e justiça.
Mas depois há o “Fanatismo Pan-bellantismo”, a designação técnica para um sentimento muito mesquinho e conservador que cresceu do senso de superioridade iniciado na Era de Melnjar. Esta coisa é muito complicada, pois implica uma série de teorias, como a descriminação por classes, a “Frieza Justa” (ou A do típico bruxo Tienense (uma filosofia muito semelhante àquela do “Caminho do Guerreiro” japonês e do “Übermensch” de Friedrich Nietzsche, que defende que o ser humano deve se superar para bem da Humanidade), que tende a ser mais sádico e vaidoso que devia ser, e também da antiga tradição do sacrifício humano perante os Deuses. Todas estas teorias têm os seus quês e os seus porquês, mas a verdade é que, por mais que tentemos, para sermos humanos, temos de nos tornar humanos, e não é com mais mortes que o vamos conseguir.
Uma coisa que tem acontecido de bom na Bellanária actual, e o que tenho notado, é que, durante os momentos de crise, o típico homem bellante, o corajoso, sedutor, elegante e frio e brilhante feiticeiro apela sempre à calma diplomática e graciosa da “Princesa Bellante”, aquela Senhora Qahlhaya divina, de cabelos louros e tez branca, da etnia das ilhas do sul, que, segundo os racistas mais racistas da nossa ilha, conseguiu salvar o império inteiro apenas com a sua inteligência e a beleza da “mulher ideal bellante”! É claro que não somos nenhuns super-homens nem nenhumas super-mulheres; já passámos por duas Guerras Mundiais…A questão são: será que o homem e a mulher bellante terão aprendido que não são brancos, mas sim negros? Negros, porque, às vezes, conseguimos ser muito cegos. O Senhor Tezcatlipoca disse, com as suas próprias palavras: ‘…devemos aprender com os erros do passado…eu perdoei as acções dos Aliados e da força do Eixos que viviam nas ilhas bellantes durante os tempos da Ocupação, e talvez seja melhor deixarmos as nossas mulheres um pouco mais de liberdade…’
Não é uma questão de sabermos se as nossas ilhas são multiculturais ou multinacionais, ou quanto mais multiraciais, a questão é se conseguimos lidar com a situação sem andarmos sempre “às turras” e conseguimos perceber se conseguimos retirar algo bom sobre essa condição de mundo tanto de escuridão como de luz!



Crónica escrita por Frau “Maggy” Lessinger no News Zone, em 1979, na ocasião de celebração da comunidade portuguesa do 25 de Abril. O pseudónimo Frau Margareth Lessinger era a única maneira que a minha mãe Katharina tinha para expressar os seus sentimentos e opiniões sobre a sua experiência como “criminosa de guerra nazi”, que era o termo mais educado que ela tinha recebido enquanto passeava pelas ruas da grande cidade de Cyborg Town. No entanto, a minha mãe foi alvo de duras criticas quando se descobriu que uma criminosa de guerra estava a escrever para um jornal liberal. A minha mãe sofreu muito nessa altura, mas lá conseguiu ultrapassar a “maldição” que nomes como Heinrich Himmler, Joseph Goebbels e Adolf Hitler lhe davam pesadelos, não só de noite, como em plena luz do dia. Porque é que a antiga “Fräulein Katharina” se identificaria com a Senhora Baronesa Qahlhaya, uma antiga heroína nacional dos tempos do Assassino do Amor…?

sábado, 2 de maio de 2009

Alea jacta est - que os jogos começem (Parte II)


A porta abriu-se, e, em vez do Assassino do Amor, encontrou uma rapariga, nova, de para aí doze anos, muito bonita, com uma túnica azul pobre e rota a cobrir todo o corpo, de cara limpa, e com cicatrizes de espadas e de chicote no pescoço, cujos cabelos encaracolados escondiam umas tristes jóias de âmbar, e, debaixo da cabeleira, haviam uns lábios secos. A cabeça, leve que nem uma pena, conformada, era triangular, e as suas mãos bege, cicatrizadas, velhas, enrugadas, poeirentas, faziam pena só de a ver.
Não cheirava a nada, e, provavelmente, seria muda, apenas o olhar servia para descrever a pobre alminha, e, aí, ela entendeu. Aquela jovem menina era uma escrava, uma criada do castelo, e, pelos vistos, era uma das mais novas.
Sobre as vestes feias e roxas, haviam insectos a comer alguns tecidos rotos, que depois o repunham, e, com várias fendas e ninhos e redemoinhos na sua roupa, a pequena menina de um metro e trinta e cinco trazia um frasco, vermelho, com a forma dum pequeno esquilo, cuidadosamente trabalhado a vidro, de oito centímetros de altura, oferecendo uma noz.
Foi aí que ela tocou na mão da rapariga, e reparou no sorriso melancólico que esta lhe lançava.
Aqueles olhos hipnóticos pareciam queimar-lhe o coração de piedade, e, sentiu as feridas profundas, os cortes ásperos que tinham sido desferidos na pele da fadinha, e, …Aquilo seria uma sílfide!... Tinham lhe arrancado as asas e todo o poder. Céus…! Aquilo era o horror dos horrores. Larvas devoravam, aos poucos, a carne de hidrogénio, água e sulfato de carbono dos quais era constituída apenas a pele da menina.
Com as cascas de enxofre a saírem, plenas, da menina, ela, falou, por fim, numa voz, fraca, rouca, e quase num fio de vida, como se estivesse a morrer ali mesmo, uma vozinha desgraçada, que já não tem nada que é seu:
- Princesa Eleonora. – Chiou a arruinada criatura. – Isto é para vós, um presente do meu amo e senhor…
Deu-lhe o frasco com uma relativa dificuldade, e, de seguida, desmaiou, com o corpo débil caído sobre o chão!
Eleonora, muito espantada e impressionada com aquela personagem, tentou ajudar a rapariguinha a levantar-se, dando um pouco do copo de água que tinha pousado na mesa, e, de em seguida, generosamente, fê-la sentar-se num banco. Não poderia, de maneira nenhuma, deixar que a pobrezinha perdesse o seu espírito, ali mesmo.
Era tão esquelética e frouxa, como se não comesse há meses uma única semente ou fruta vinda da floresta, que a princesa decidiu compartilhar as suas riquezas com ela, dando-lhe de beber à boca, chegando-lhe o jarro aos lábios.
Aliviada, com um sorriso gentil, ela olhou para a escrava, ainda com os olhos preocupados, segurando-lhe no braço magríssimo.
- Pronto, estás melhor?... – Disse ela, provando, mais uma vez, a sua nobreza de carácter.
A sílfide, abriu lentamente os olhos, piscando-os de vez em quando, de momento para momento.
A princesa ficou com receio que este fosse o fim para a coitadinha, e, então, esperou mais uns minutos. Só esperava que ela não morresse…
Então, a pobre menina lá abriu a boca mais uma vez, e foi então que Eleonora pousou delicadamente o jarro de barro cheio de água.
- Não precisáveis de fazer isso, Vossa Alteza. – Gemeu a sílfide dificilmente, com lágrimas nos olhos.
- Ora, não precisas de agradecer, querida. – Eleonora sorriu, contente por ter ganhada uma nova confidente. – Só fiz o que qualquer outra pessoa ou criatura mágica faria.
- Não é verdade. – Lamentou-se a outra, com os cabelos encaracolados castanhos a esconder a cara. – Os Bruxos são horríveis e tão maus, …
Batem-me, gritam comigo, ameaçam-me!... Dirlent, o duende e assistente de laboratório de Sua Senhoria, é o pior de todos! Puxa-me os cabelos, lança-me centopeias para o meio da cara!
Com as lágrimas de água potável a escorrerem-lhe pela cara branca de nuvens, ela pôs as suas mãos nela, chorando irremediavelmente.
- E…A coisa mais terrível de todas é que…Nós, Fadas, não podemos fazer nada contra isso! – Exclamou, cheia de dó de si. – Oh, por favor, ide embora antes que seja tarde demais!
- Não me vou embora deste castelo enquanto não me certificar que todas as Fadas e criaturas daqui estão a ser tratadas como deve ser. – Respondeu a rapariga, renitente com toda aquela injustiça. – Então não te preocupes, porque falarei de imediato com o teu senhor e, em breve, tudo mudará. Tem esperança, e põe um sorriso, ficas mais bonita assim.
A jovem sílfide tentou forçar um sorriso, enquanto se recostava no assento, mais alijada de todo o trabalho que tinha no castelo. Ela pôs, timidamente, um braço nos ombros da jovem princesa, e deixou-se ser consolada por ela, abraçando-se infantilmente ao seu corpo.
- Oh, sois tão generosa para com o vosso povo, Princesa. – Soluçou ela, acalmada pelo calor fraternal de Eleonora.
- Também não vale a pena chorar por leite derramado. – Animou a rapariga mais velha, dando palmadinhas nas costas dela. De repente, afastou-se e soltou uma risada despreocupada – Desculpa, sou tão distraída que quase me esqueci de te perguntar o nome.
- Ariana, só Ariana. – Inquiriu ela, de mãos cruzadas sobre o colo, encolhendo os ombros.
- Tens um nome muito bonito, Ariana. – Riu-se a princesa divertida. – Não és de cá, pois não? O meu nome é Eleonora, portanto, gosto mais de que me tratem assim, está bem?
Ariana suspirou, quase sem fala, mas, logo recuperou do terrível choque, sentada diante da rapariga.
Ela era verdadeiramente, uma caixa de surpresas, e, depois da princesa contar como é que tinha entrado naquela “casa assombrada”, foi a vez da pequena sílfide contar a sua história, aproveitando para desabafar com alguém diferente e novo lá na casa enorme.
Acenando com uma das mãos, ela bebeu do jarro e fez um movimento especial com as mãos.
- A minha mãe era uma demónio, espia e informadora do Senhor do Castelo, enquanto que eu ainda não tinha nascido. Isto passou-se muito antes do desastre. – Explicou ela na sua voz fininha. – Quando ela se apaixonou por um elfo na Floresta de Cristal, ficou grávida. Porém, o meu pai, ele próprio, era um espião, a trabalhar para a Rainha Melnjar, e, depois de eu nascer, nunca mais quis saber de mim. Furioso, o Assassino do Amor matou o meu pai e arrancou-me dos braços da Mamã e matou-a no mesmo dia, despedaçando-lhe o coração com a espada, literalmente, preocupado que ela tivesse denunciado algum segredo importante. Não quero ir em detalhes, porque foi uma coisa horrível de se ver.
- Jetwas seja louvado! – Interrompeu Eleonora. – Que feiticeiro cruel que este tal Assassino do Amor é! E mesmo assim, poupou-te a vida?...
- Na condição de que eu estivesse aos serviços de Sua Excelência, trabalhando para ele como serva, e depois como concubina, quando tivesse a idade apropriada. – Concluiu tristemente Ariana, com uma lágrima nos olhos, assustada, obviamente, com a ideia de ser violada por algum feiticeiro, ela conhecia muito bem a lascívia deles.
- Mas tu mal tens doze anos! – Disse a rapariga, atónita, de mãos estendidas para a amiga. – Impressionante do que aqueles bruxos são capazes, não é?
A outra limitou-se a abanar a cabeça, habituada à forte violência a que estava habituada, e Eleonora compreendeu uma parte muito importante da natureza humana, e de todos os seres mágicos: quando somos submetidos a provas que arriscam a nossa vida, fazemos tudo para sobreviver, mesmo viver como homens sádicos como aqueles feiticeiros.