quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Os Amigos e Inimigos do Narciso Negro...! (1ª Parte)


Pois que então não se vissem os pássaros a cantar uma alegre canção de triunfo, e as flores a murchar, como que os belos, coloridos cabelos de pétalas se perdessem numa chuva de folhas geladas e pesadas, como que lágrimas dos longos, velhos, escarnecidos, chorão, que, sombrios, murmuravam ao vento ladainhas que, desde pequeninos já tinham sido contados e narrados pelos seus trisavós! Que as ervas não fugissem aos juncos, com as suas ondas turvas de águas sujas de pântanos, que assemelhavam-se ao fim de um lindo, amável, desiludido, quase enlouquecido, soneto de amor cantado às cotovias, que, geladas pelos ventos, agrestes, amargos, que sopravam de Este, enquanto o Sol nascia entre nuvens ameaçadoras e negras. Os lagos, envergando tristes vestidos de luto, negros, enquanto a Lua, esta, branca, pálida, ainda dançava, como uma ninfa adormecida, sob a melodia, embaladora, das corujas, que, estas, sábias e ancestrais anciãs da noite, bibliotecárias de mil e um sonhos e pesadelos, lançavam os seus últimos olhares em direcção à terna luz dos pirilampos.
Os caracóis que envolviam, secos, os castanheiros da índia, resplandecentes, naquela luz de madrugada, passeavam, pois estas flores, são raras na Bellanária, e, no Outono, costumam gerar uma coloração cinzenta, quase prateada, a quem os narcisos se inquietação, perante uma perturbação qualquer vinda por entre as sombras da natureza morta que vem por entre os aromas das rosas, que se escondiam por entre campainhas húmidas e folhas castanhas das vinhas naturais, que se entrelaçam, como eternas amantes, aos carvalhos e aos eucaliptos, erguendo-se, até ao infinito da alma das pequenas flores de groselha azul, que apenas floresce em cada cinco anos, e, que o seu fruto, terno, doce, tal como as curvas das asas de uma bela pomba branca, germina na forma dócil, subtil e macia das coxas de uma bela figura divina.
Esta flor é chamada na Bellanária como Pollishunumarisihsita – “O Meu Amorzinho”, por se assemelhar às coxas, cruas, mas deliciosas, de uma mulher jovem e frágil. As últimas sílabas juntas – risihsita – é um hipocaristico ou um nome carinhoso que o típico bruxo sedutor das florestas chama à sua amante, como que a referenciar às partes íntimas das nádegas de uma mulher. Pode ser considerado, na língua e cerimónias aristocráticas das Fadas e do mundo civilizado dos Deuses, como a gíria das classes de Bruxos mais baixos – “Mein Schatz” – é outra planta que só cresce em estações frias ou em climas muito gelados ou hostis.
A zona em que se estava era uma daquelas sombrias, largas travessas, rodeadas de vários campos, brancos, de ciprestes, cinzentos, inexpressivos, e frios até ao próprio vento. Eram estes os arredores de Cyborg Town.
A Travessa de Aloísio Colóquio não era um dos melhores lugares para se estar a esta hora da noite, principalmente quando se é um jovem centauro de dezoito anos e ainda por cima, com uma mãe judia, não que não goste da minha mãe humana, e que era a melhor do mundo….É só que, naqueles tempos, era preciso ter-se cuidado, pois, se fôssemos centauros, e ainda por cima judeus, nem precisávamos de uma placa de néon a dizer “Estou aqui, atirem-me com tudo o que tiverem” para que viessem todos os inimigos conhecidos e mais alguns quantos a atacar-nos, apenas por sermos da classe dos Demónios. Mas, para explicar tudo isto muito bem explicadinho, precisava de mais uns capítulos, e o que interessa saber agora eram as ameaças que corriam por aqueles lados, naqueles tempos.
Depois do que aconteceu no capítulo anterior, duvido que alguns de vocês ainda estejam com vontade ler este romance, mas, lá dizia o sábio Salomão, «é glorioso para um homem desdenhar uma ofensa…» contarei tudo ao pormenor, o que me aconteceu, a mim e aos meus companheiros…não é uma história de amor e triunfo, não é uma história de ódio nem de vingança, é sim uma história em que há um tempo para tudo. “Há um tempo para nascer, e uma altura para morrer, uma altura para plantar e uma altura para recolher o que plantámos/, uma altura para matar e uma altura para curar, uma altura para a queda de alguns e uma altura para se reconstruir/, uma altura para chorar e uma altura para nos rirmos, uma altura para fazer luto e uma altura para dançar/, uma altura para lançar pedras e uma altura para as juntar, uma altura para nos juntarmos e uma altura para fazer o refrão desse mesmo ajuntamento/, uma altura para amar e uma altura para odiar, uma altura para guerras e uma altura para paz…”

Primeiro de tudo os edifícios, sempre negros ou brancos, pareciam ter milhões de olhos como janelas, de estilo barroco, numa diagonal estranha e bizarra, que dava para mil e um caminhos de terracota e tijolo, quase como se estivesse pintado com o sangue derramado sob os pobres amantes, melancólicas vozes de estranhas e vigilantes criaturas da noite, que, por vezes, sussurravam clamores diabólicos, por vezes tenebrosos, de poder sair, daquela amargurada tortura!
Sentia-se um horrível, mas delicado aroma a enxofre, uma vez que as casas tinham milénios e milénios de construção; ninguém se atrevera a dedicar, novamente, o seu amor por elas, assim sendo, estavam ali, abandonadas a habitantes desnaturados, como fadistas, ciganos, demónios e a outros pobres infelizes seres.
Por vezes, havia um desesperado, desconsolado, fiar de roca, atravancada, velha, que, com lágrimas sobre a madeira grave, como que se fosse a serradura o seu rosto cansado de velha de bengala, e as pernas de carvalho, quase sem frutos, o grito mudo daquela coxa mulher, que, enquanto na escuridão daquele crepúsculo, parecia ser a única vivalma, negra, triste, melancólica, perdida, abandonada, num lago de e mil e um vermes, predatórios, consumidores, ingratos, egoístas, mesquinhos, que a devoravam, aos poucos.
Amor perdido dentro de um coração de andiroba, peito descaído sobre seda roubada aos bichos dos bosques selvagens, negros, e mãozinhas de fantasma, ninfa, moura que, eternamente, tinha uma renda para terminar, para que o seu amado, coitado, sem dinheiro, pudesse tornar a ela, tal como o divino príncipe dos céus, messiânico, que sempre fora.
Ela, pobre travessa, pobre rua, roca sem destino, sem fuso, ai! Ninguém a respeitara, ninguém cuidara, alguma vez dela, e não passava de uma viela, de um traste, que albergava bandidos, demónios e delinquentes, nas suas velhas saias de janelas de barroquismo, iluminado entre candeias de azeite e olhos amarelos dos gatos pretos vadios, quase farsantes, grandes, como as chamas de duas efémeras, quimeras passageiras, de duas velas, postas em castiçais, como últimas decorações de prédios musgosos e empoeirados pelas ratazanas, dos quais os sinistros e arrepiantes corvos, como especiais e honrados anfitriões, não se faziam rogados ao retirar aos seus convidados um pouco das últimas migalhas que chegava lá do riquíssimo e glorioso centro da cidade.
Por enquanto, os habitantes daqueles bairros arruinados e antigos, quase góticos, continuavam a ser pobres, e nenhum deles tinha a vergonha disso, não. Aquela era uma existência antiquária, temporária, e todos aqueles que viviam bem longe, naqueles arredores secos e desgraçados pelas garras dos tempos, eles sabiam que, mais cedo ou mais tarde, dariam de fertilizadores para mais um rebento de cipreste, esta era a filosofia daquela estreita e mal feita rua, que apesar de ser cinzenta e horrível, e, apesar de um terço da sua população sofrer de toxicodependência, ninguém tinha pudor disso, e ninguém tinha pudor dos seus trabalhos, por muito sujos que eles fossem.
Sentia-se uma mistura nauseabunda de vários tipos de tabaco, desde ao fumo do cachimbo do ópio até ao inebriante estupor de morfina e de haxixe. Algumas pessoas ou demónios já não tinham esperança de mais viver, por isso, matavam-se, aos poucos, e, desde que a vida fosse levada sobre as regras do forte condão da fada do absinto, tudo correria bem.
O tresandar daqueles lugares assustava muitos bellantes da alta aristocracia, ficando absolutamente admirados, com o aspecto daquela sofreguidão e solitária daquela vida de pobre, onde se tinha apenas sopa de cogumelos e papas de sarrabulho com pickles como única refeição do dia – ou se comia aquilo ao almoço, ou não se comia mais nada!

Aqui não havia lugar para Dia de Magia Negra ou festas, era apenas comer e ficar calado o que a alta sociedade de Bruxos lhes davam como prenda naquele dia tão especial…E que tinha ele de tão especial?...
Só se fosse os gritos do raro ardina que passava por aquelas zonas, gritando, na sua vozinha de menino de dezoito anos, andando de bairro em bairro, distribuindo os jornais grátis do povo, desde que Sua Alteza soubera que as poucas pessoas letradas daqueles antros não tinham com o que ficar informadas.
Esse miúdo, trigueiro, tão pequeno quanto um elfo – isto é, se não fosse já um – começou, por aí, a distribuir os jornais da “Informação Bellante Matinal”, a partir das seis horas da manhã.
Esse rapaz, jovem, envergando um enorme sobretudo, gasto que já devia ter uns sete anos para cima, um pólo castanho claro, e uma camisa rasgada que nem chegava ao umbigo, com uns cabelos encaracolados de azeviche, secos, abanando até ao pescoço, de nariz arrebitado, era uma das personagens mais engraçadas e divertidas que tive o prazer de conhecer. Com ele, passei muitas noites em branco, segurando, com todos os cuidados, a vela da minha mocidade, com ele toquei guitarra junto aos famosos fadistas da época, com ele escrevi poemas que nunca serão vistos por olhos de ver, mas sim pelos olhos da sabedoria, daqueles que passaram pela fome, pelos meses frios de Inverno, pelas fugas aos bruxos e aos demónios fanáticos…Enfim, digamos apenas que centauro, metade pobre, metade feliz, metade humano, metade monstro, metade amor, metade ódio, lá, na Travessa Aloísio Colóquio, encontrava-me sempre com esse centauro, com esse amigo desde as três até às oito e meia da manhã. Era na Travessa Aloísio Colóquio em que misturavam-se as lágrimas nestas minhas mãos, e em que, sobre ele, iluminava-se um sorriso de café barato em pó, que comprávamos em lata numa loja num canto esquecido do universo, e depois misturávamos com o nosso leite e a nossa broa de cada dia.
Este era um jornal, escrito por seres humanos ciganos e por demónios, que sabiam escrever e ler muitíssimo bem, e que dedicavam os seus fundos – os jornais eram apenas grátis para quem não tinha dinheiro para os comprar, as pessoas de classe média e de classe média alta e de classe aristocráticas eram forçadas a pagar ao menos dois centauros pelo jornal – à sua interessante campanha para ganhar alimento para os seus camaradas, o que dava mais interesse a este facto, era que eles diziam mal de toda a gente, e saliento mesmo, toda a gente que vivia em Cyborg Town. Desde as mulheres prostitutas demónio, até aos hipócritas e honrados, cavalheiros bruxos da alta sociedade que habitavam nos arranha-céus e edifícios mais chiques da grandiosa metrópole.