quinta-feira, 1 de março de 2012

A Morte da Noite das Estrelas (Parte II)

Subitamente, às nove e meia, uma lustrosa limusina preta parou em frente do enorme arranha-céus neo-clássico ao estilo dos Estados Unidos. Aquela era uma das residências não oficiais da Imperatriz.
Tremi dos pés à cabeça: era um bruxo! Uma das janelas dos bancos de trás do carro abriu-se e revelou uma luva de pele negra a segurar numa boquilha de madeira cor de sangue, cuja apoiava um cigarro. Aquela mão...lembro-me que adivinhei que era a mão de um homem, mas era tão magra que fez-me lembrar a mão do próprio Diabo!

Um aprendiz de feiticeiro de vinte anos apressou-se a abrir uma das portas da frente: parecía ser Chinês. Precipitado, ele correu para o lado do carro onde o dono do cigarro estava sentado, como se estivesse morto de medo. Com a pouca luz dos candeeiros de rua, consegui ver o rosto do coitado: era mais velho que eu um ano.
Com a pele toda arrepiada, ele abriu ao de leve a porta de trás.
- Muito boa noite, Vossa Excelência! - Exclamou o pobre companheiro em Alemão a gaguejar, enquanto fazía uma vénia complexa e formal ao seu senhor.

Mas, em vez de responder cortesmente, as luvas semi-ocultas na penumbra da limusina pegaram numa pistola e alvejaram o rapaz inocente! Não consegui conter o horror ao ver o jovem a cair morto no chão. As minhas pernas não se conseguiam mexer de tão assustado que estava: era como se tivesse ficado paralisado com o choque, a própria boca recusava-se a dizer fosse o que fosse! Sem saber o que fazer, permaneci escondido atrás de um pessegueiro.

Depois de tudo isto, uma das luvas de pele finíssima guardou a arma, fazendo-a desaparecer no interior da limusina. Engoli em seco, ao tentar dizer a mim próprio que aquilo era tudo real. Ao mesmo tempo, estava curioso: o que é que aquela figura sinistra quería de Sua Majestade? Era tudo muito estranho! Não havía qualquer sinal de feridas causadas por balas na parte do corpo onde a luva tinha apontado.

Dentro da limusina, saiu um vulto escuro e alto, com os olhos cobertos pelo chapéu de feltro preto que usava. Tinha uns sapatos pretos a combinar com a gabardina de couro comprida. E de repente, parecia que a avenida estava gelada!

Mesmo que esteja habituado ao frio do Inverno precoce do Norte, eu estava a tremer de frio! Aquilo não era normal. O fumo que saía daquela boquilha transformou rapidamente a avenida amena numa paisagem digna de um filme de terror. Eu mal conseguía respirar na avenida. Respirava-se um ar pestilento e quase tóxico, onde uma espessa neblina prateada cobría o céu outrora coberto de estrelas. O fumo do cigarro sugou todo o oxigénio que ainda restava do jovem rapaz humano. Foi aí que o vulto coberto naquela gabardina preta estalou os dedos livres da mão direita, e o cadáver elevou-se até estar à altura daquela figura sinistra. Numa questão de minutos, ele sugou com os caninos afiados tudo o que era carne do corpo do pobre diabo, devorando com um espantoso apetite o coração e as tripas do rapaz Chinês. Aconteceu tudo muito depressa, mas quem quer que fosse o homem, ela era um filho da mãe completamente passado dos carretos! Já se passaram milhares de anos desde que os bruxos costumavam devorar a carne de outras classes.

Mais uma fumarada saiu daqueles lábios sangrentos e secos, e todos os candeeiros da avenida apagaram-se! Só se via as luzes fantasmagóricas de fogos-fáctuos a brilharem na penumbra daquela noite gelada.

Ao certificar-me que aquele vulto não me via, comecei a segui-lo. Enquanto subía as escadas de mármore branco, o vulto negro pisou o que restava do coitado do rapaz Chinês com um prazer sádico.
Decidi tomar um atalho para chegar mais depressa aos aposentos de Sua Majestade. Não faço a mínima ideia porque é que fiz aquilo. Acho que tive um pressentimento a dizer-me na cabeça que tinha de proteger a Imperatriz.

Entretanto, Sua Majestade estava a tomar banho. A Imperatriz é de origens Alemãs, ou pelo menos foi isso que ouvi dizer. Ao encontrá-la naqueles preparos tão embaraçosos, corei como um tomate.

- Perdoai-me se vos incomodei, Vossa Majestade, mas correis perigo de vida! - Gritei o mais alto que pude, enquanto corria ao de leve as cortinas que a separavam do meu olhar. - Tendes de sair daqui o mais depressa possível!

- Oh, meu Deus! Quem está aí?! - A Imperatriz gritou, aflita, ao olhar para todos os lados com os seus caracóis louros molhados e a sua figura eternamente bela.

Tinha-me esquecido completamente que sendo um demónio centauro, era invísivel aos olhos da esposa Alemã do Imperador.

Então, ouvi homens a sufocar nos andares inferiores, a gritarem de agonia e de terror, provavelmente cortados às postas por uma espada afiada e silenciosa. Era impressão minha ou aquelas vozes eram as dos guardas?!

Meu Deus! Se os feiticeiros experientes da Guarda Imperial da Resistência não podem contra aquele bruxo, que farei eu?

Pensei para com os meus botões, e como se os meus pensamentos fossem mais rápidos do que as minhas quatro pernas, corri o mais depressa que pude até ao armário. Mesmo assim, tentei espreitar pela fechadura o que iria ser da Imperatriz.

Ao ver que não havía luz, ela suspirou aliviada. Provavelmente estava a pensar que ao deixar a janela aberta, tinha feito uma corrente de ar consequentemente causando um assobio, fazendo-a pensar que tinha ouvido uma voz. Quando ela acendeu umas velas, viu que não estava ninguém no quarto luxuoso.

Estava a imaginar coisas que não existiam...A senhora de quarenta e cinco anos, mesmo assim, muito bela, ficou um pouco preocupada. Até dava pena, ela, coberta com uma túnica branca de dormir, quase transparente. Passar por um escândalo como aquele de ter sido vista com outro homem que não o Imperador deve ter sido um duro golpe para a Coroa Imperial Bellante.

Sua Majestade sentou-se numa chaise-longue verde-escura, enquanto que lia um jornal parecido com aquele que eu costumo vender.

O espelho reflectía a data de 30 de Maio de 1936 estampada no jornal. A fotografia principal era o título do cabeçalho do jornal sensacionalista: tudo preto no branco, com todas as letras maiúsculas em negrito.

A nossa Imperatriz foi apanhada com um vadio tatuado numa rua duvidosa!

O título explicava bem o contéudo do "artigo". Os fotógrafos - se é que se pode chamar fotógrafos a pessoas daquele jornal horrososo que é a Lagarta - nem sequer tinham tido a decência de tirar uma imagem em condições com o suposto "amante" tatuado. Que eu saiba há muitos bruxos Japoneses que têm tatuagens nas costas e ainda por cima, era um dia húmido e quente. A malta da Lagarta deve ter aproveitado o facto de que o aguaceiro tinha passado para conseguir uma imagem pouco nítida de Sua Majestade de frente e o tal "amante" de costas, perto de uma cerejeira em flor, numa esplanada com um ar muito boémio em Cyborg Town. Ele parecía-se com um outro bruxo qualquer. Sinceramente, não havía nada de interessante naquele personagem.

A Lagarta é mais conhecida entre os intelectuais como "A Última Palavra da Lagarta". As minhas orelhas captavam aquilo que poucos humanos tinham visto no rosto da Imperatriz naqueles meses: desespero, puro desespero!

Cá para mim, ela estava disposta a ser perdoada pelos Deuses por ter amado outro homem...eu cá nunca percebi como é que uma mulher ficar cansada de um homem. Ainda sou virgem. Como é que o Imperador estaria a reagir a tudo isto? A opinião pública mais conservadora de certeza que não a faria esquecer assim tão cedo aquele pecado! Melnjar IV (tinha sido baptizada, como era hábito na Bellanária quando pessoas estrangeiras se uniam à Família Imperial, o seu verdadeiro nome era Karolina Stephanie Von Habsburg) era conhecida como uma imperatriz muito conservadora, muito amarga, mais amiga do dinheiro do que do marido...Mas enfim, as pessoas gostavam dela...Como é que Sua Majestade tinha podido descer tão baixo?

Após uns minutos de um silêncio apenas perturbado por um pequeno soluçar da Imperatriz, escutou-se um repentino forçar da porta do último andar. Um feixe de luz atravessou a fechadura e a porta abriu-se sozinha, à medida que Sua Majestade olhava, muito envergonhada e nervosa para o jornal.

Era o homem que tinha devorado os órgãos do pobre rapaz Chinês!

- Oh...És tu! Porque é que não me deixas em paz? O que é que tu queres de mim? - Perguntou a Imperatriz em Alemão, ao cobrir os seios com ambas as mãos.

Eu estava a tremer que nem gelatina, preocupado com a segurança de Sua Majestade.

Mesmo assim, ela continuava a encarar o bruxo, num misto de desprezo e de medo.

- Fizeste com que a minha vida caísse na lama, destruíste a minha alma pura! Agora que não me resta mais nada senão vergonha e desonra, porque é que não me deixas descansar em paz...?

O homem não respondeu. Aproximou-se dela e tirou uma das luvas. Sua Majestade só podia imaginar o que é que iria acontecer a ela a seguir, fechou os olhos e disse para consigo própria:

Isto é só um pesadelo, isto é um pesadelo, só pode ser um pesadelo!

Entretanto, eu vi que os lábios frios do bruxo estavam a tocar na pele branca do pescoço da Imperatriz. Deve ter sido uma sensação arrepiante para a pobre senhora! Até parecía que fora o próprio Diabo que a beijara! De repente ela sentiu que uma lâmina passeava perto do pescoço dela, quase numa carícia. Como que se fosse um sabre vindo do Inferno, a lâmina arrancava-lhe uma boa parte pescoço!

Ao provar com uma língua exageradamente longa e bifurcada o sangue que escoava do pescoço dela, ele beijou uma vez mais o pescoço, desta trincando a parte tenra da pele que ainda não tinha sido esfolada.

Eu estava a suar em bica, arregalando os olhos...Nunca pensei que um bruxo fosse capaz de cometer uma coisa tão horrível!

A Imperatriz ainda quis gritar por socorro, mas o seu agressor conseguiu abafar o som de qualquer forma, ao beijá-la nos lábios.

Depois, uma voz fria e arrepiante disse suavemente:

- Gute Nacht, meine feines Liebe...

Depois de ter pronunciado aquelas palavras, o vulto não disse nada, ao deixar a Imperatriz estatelada e ferida no chão. Retirou dentro da gabardina de couro uma outra espada e ouviu-se um som parecido com o sibilar de um vento gelado de Inverno, que capturou no aço a alma da pobre Imperatriz. Eu e Sua Majestade tínhamos visto quem é que era o assassino perverso; o grito que eu quería dar não saía da garganta. Estava demasiado assustado para fazer fosse o que fosse.

No meio da noite, escutou-se uma gargalhada maníaca de um homem, semelhante ao ribombar de um trovão, que arrepiou as Fadas da Floresta de Cristal, uma risada de hiena que provocou o terror nos corações e almas de todas as criaturas que viviam na Bellanária!

Não posso dizer mais...