segunda-feira, 1 de novembro de 2010

A Estátua da Vingança



Há muitos anos que eu já estou aqui, neste pedestal de pedra e de jade esculpido, perto do Poço das Três Bisavós da Senhora Murakami, perto da Praça dos Nove Gritos. Chama-se assim porque se supõe que foi aqui que a minha mãe, a Rainha Kalkashanta morreu ao dar-me à luz. Estou sempre habituada a ver os humanos a passearem por aqui, mas eles quase nunca me cumprimentam. Quando era mais nova, isso sim eram pessoas respeitadas, os homens. Tremiam, faziam vénias, com as suas mãos, beijavam a minha cauda de serpente e tudo! Agora sou apenas uma estátua de jade pintada, esquecida no meio de uma praça cujo nome raras são as pessoas que percebem o significado. A minha cara fria penetra bem dentro do seu coração, tenta adivinhar o que estarão elas a pensar sobre mim, e sobre os meus olhos amarelos de serpente. Mas ninguém quer ouvir o que uma estátua tem para dizer. A minha pele gelada de jade quase que não sente aquilo que alguns rapazes costumam fazer quando me atiram bolas de neve. Não sabem quem é que eu sou. Há coisa de poucos duzentos anos, costumavam haver pequenos rapazes que, por esta altura, colocavam oferendas em minha honra e enfeitavam o meu quimono de seda japonês e o meu roupão e túnica bellante de couro dourado com fitas brancas e azuis-claros. A representação da pessoa de quem eu era em vida, e da criatura magnifica, da inspiração que eu tinha sido para muitos dos habitantes do Norte – era algo que os fazia arrepios e ao mesmo tempo, uma sensação de protecção inigualável. Eu era a única pessoa que conseguia fazer frente ao Assassino do Amor, chinês maldito. Nós, as serpentes, somos como filhas da natureza: mesmo mortos, temos um pouco de alma para pensar, para ter olhos, para olhar para os Humanos. Os meus lábios, já gastos, outrora pintados em bétel, eram belos, e todos os homens tanto me temiam, quanto me amavam. A Senhora Murakami era uma amiga do meu peito, ela fazia sempre uma curta vénia e dava um ligeiro sorriso sempre que me via. Ela era uma filha da neve, ela sabe o quanto eu sofro. O meu cabelo, longo, negro tal como as penas dos corvos, costumava ser o mais invejado por todas as criaturas femininas. As mulheres humanas costumavam olhar-me com um lampejo de medo nos seus olhos. Afinal, que sou eu, senão a irmã gémea de Shamanarta, eu, Rusalka, a Rainha das Nagas?! A minha irmã simboliza a serenidade do Verão, eu sou o início da Primavera. Os humanos a quem os bellantes chamam de Russos puseram-me o nome de uma famosa fantasma eslava.



Quando soube deste tão insultuoso evento, fiquei com vontade de me agarrar ao rapazinho de cabelos de avelã que trocou a minha linda placa que tinha o meu antigo nome em japonês por um nome sei lá de onde veio. Que vergonha, agora já nem sei qual é o meu verdadeiro nome. Seja como for, eu não gosto lá muito do clima do Verão, muito menos o da Primavera. Prefiro o Inverno e o Outono, com as chuvas, a neve – oh, que coisa tão bonita que ela é, a cair ao pé do meu pedestal, enquanto os Homens morrem, estafados nos seus casacos pesados de pele de animais. Eu cá não me importo de os ver, eles é que nem dão pela minha presença, principalmente no Inverno. Se olhassem para os meus olhos, diriam que eu sou uma filha da neve, mas eu cá, sou mesmo uma filha de Jetwas, uma filha e uma irmã, escrava e rainha! Numa das minhas mãos, eu seguro um bastão de ouro – ou pelo menos, costumava ser feito de ouro, agora acho que é mais de bronze ou de ferro ou de outra coisa que substitua estes metais.



Quando eu era nova, costumava cantar nos grandes cabarets de Cyborg Town, quando os meses da Magia Negra chegavam. Quando eu era nova…Enfim, era tudo diferente. Os Invernos duravam mais tempo, os Verões eram mais curtos, e o meu corpo esticava-se sobre rapazinhos indefesos.


O meu corpo alto de mulher era atraente, todavia, ai de alguém que se esquecesse que a parte inferior era de uma serpente. Os meus quatro braços envolviam falsamente, com um ar tentador, aos jovens feiticeiros.



Antigamente, eles tinham medo de mim. Agora, ninguém olha para os meus lindos olhos amarelos, que conseguiam fazer com que uma mulher humana soltasse um grito de terror!



Em cada uma das faces, eu tenho uma bola vermelha pintada, para condizer com os meus lábios da cor do sangue. Com o umbigo e as ancas à mostra, eu desafio Jutierkajam, o grande deus águia demoníaco das tempestades e do mar revolto.



Não que eu me importe muito com isso nos dias que correm. Com os Russos a chegarem que nem baratas à nossa ilha, eu não tenho tido visto nada senão homenzinhos convencidos que julgam saber tudo sobre a vida. Já para não falar nos Nazis, que quiseram deitar-me abaixo, os idiotas!



Se eu pudesse, dava-lhes um enorme puxão de orelhas! Ah, mas eu não vou permitir que me tirem do meu querido pedestal, me dispam das minhas queridas roupas envelhecidas pelo tempo e que me partem em bocadinhos, como fizeram a outras figuras divinas. Afinal de contas, sou uma bellante, e vocês sabem muito bem o que é que se diz sobre as mulheres bellantes: “Quem quiser fazer troça de uma mulher das ilhas, é melhor que corra a milhas depois de a ter traído!”



Contudo, hoje estava tudo muito calmo. Um Kolmanatry de origem judaica parecia estar a tocar uma bela sinfonia, perto dos campos dos Von Tifon. Gosto imenso dos Kolmanatries. Eles não são como a maior parte dos humanos, eles conhecem a Mãe Natureza. Eu ouvia atentamente a sua melodia, e, pouco a pouco, senti-me como nos velhos tempos em que estava viva.



Aquele jovem rapaz humano decerto tinha um talento especial com o violino! Nunca tinha visto ninguém a tocar tão bem um instrumento, a expressar os seus sentimentos poéticos aos elementos, às cerejeiras em flor…E eu vi-o com os meus próprios olhos. Reconheci que era logo um judeu por causa do seu nariz grande e curvo, e da sua cara pálida…Tal como a neve!



Era belo, tão belo quanto o próprio Assassino do Amor, o meu eterno inimigo! Subitamente, um velho instinto impiedoso de matar invadiu a minha eterna alma! Aquele homem tinha uns olhos esquisitos, uns olhos semelhantes ao do antigo feiticeiro chinês que eu tinha enfrentado há milénios atrás.



Ele tinha matado várias mulheres da minha espécie, e eu tinha congelado de morte e de medo muitos dos homens dele.



Tínhamos, sem sombra de dúvida sido inimigos um do outro em vidas passadas. Ele, o Diabo dos Infernos, eu, a Mulher Serpente do Inverno e do frio do norte. Senti uma vontade de o estrangular com as minhas garras eu própria! Porém, eu não podia fazer nada, estava pregada àquele maldito pedestal.


Era a maldição que Samiel tinha arranjado para me manter quieta. Já que eu era da classe dos demónios, ele tinha que me manter presa em algum sítio. Escolheu, portanto, aprisionar-me numa estátua de jade pintada.


Mas enfim, não quero alimentar mais o meu ódio que tenho por aquele homem!



De manhã, fiquei mais calma quando o nosso Senhor de Quem Somos Todos Escravos passou por aqui. Subitamente, escutei gritos vindos do Château von Tifon. Que se passava ali…?



Eu sabia que aquele grito era da neta da Yui, mas nunca pensei que mais desgraças viessem a ter encontro àquela pobre e pura princesa!



Tentei cheirar com o meu pobre e fino, pequeno demais, nariz, o ar frio do vento, mas, repentinamente, tornou-se quente. Sua Senhoria estava a dar uma maldição àquela rapariguinha mestiça.



É claro que não era nada comparado com aquilo que me tinha acontecido a mim! Aquela princesa ia ser capaz de o ultrapassar...



E o facto é que, numa questão de minutos, eu já não escutava mais o ar seco do calor insuportável. Chuva. Estava a chover… A chuva lavava todos os meus problemas. Fiquei com os olhos um pouco salteados de lágrimas, mas não me importei. Desde que o antigo ducado ficasse mais fértil e as frutas mais maduras que nunca.