Embora a Dinastia Di Neptunus já viesse de seis gerações
combinada com vários casamentos de outras famílias nobres da Bellanária,
Melnjar VI começou lentamente a ficar cada vez mais parecida com a primeira
Imperatriz. Na maior parte das vezes, a tia de Eris tinha uns sonhos muito
esquisitos à noite. Dizia que, quando o marido a vinha visitar, o ardor da
paixão não era o mesmo quando eram novos, que sentia-se a arder de febre sempre
que estava sozinha, e que ao acordar de madrugada, via que estava ali, à beira
do seu leito divino, a pele de uma cascavel dos montes do Sul Bellante. Que as
cortinas sibilavam à noite, que ela estava sempre a ouvir as cordas de um
instrumento exótico ao adormecer, um zumbido de outro e uma voz de uma mulher a
cantar sabe-se lá de que lugar, numa língua estrangeira.
- Mas…oh, como todos estes sons são belos…tristes mas
belos! As árvores a assobiar ao ritmo da música, enquanto os pés cantam ao
sabor do vento…Olha, uma coisa, filha: se alguma vez experimentares os
chocolates e pastéis dos Di Euncätzio, não te duvides dos teus sentidos, pois
estas iguarias são comida demasiado voluptuosa para donzelas da tua idade. –
Comentava a tia à princesa enquanto caminhavam em direcção à carruagem que as
levaria até ao bairro Chinês. Como sempre quando saía, a Imperatriz usava,
juntamente com o quéchquémitl da cor
da noite pintalgado com estrelas, uma túnica da cor do mar, aveludada e que
chegava a cinco metros de comprimento de cauda, com a tiara prateada com penas
prateadas de Imperatriz a adornar a longa cabeleira, amarrada num carrapito de
carvão fulgurante. Cabelo esse que chegava perto do peito elegante de senhora.
Levava um leque de penas de quétzal, adornado com uma jóia de madrepérola.
A acompanhar a senhora, estavam duas aias de inferior mas
graciosas vestes que a ajudavam a carregar o pesado Keramyatzal, a túnica de sete peças cerimoniais, apenas usado pelas
donzelas da casa Imperial. Ambas usavam lindas tiaras de bronze, os símbolos
das respectivas nobres famílias que faziam parte da corte de Suryadevnahutbal
encravados em cada uma. Também elas usavam o quéchquémitl, a camisola sem alças ou mangas, que cobria dois
terços dos seios delicados. Estas usavam lindas saias cor das ameixas, de um
vermelho rosado, combinado com uma rosa bordada em branco, a cor da felicidade
e da pureza. As sandálias cor das lindas flores alaranjadas com sinos de prata
anunciavam a todos os sacerdotes, guardas, servos e escravos que aquelas eram
as aias da Imperatriz.
As trombetas de bronze ecoaram por todo o districto
sagrado onde viviam os nobres de todo o Império. Eris tinha-se apressado para
pôr o seu melhor quéchquémitl cor do
oceano, claro como os seus olhos. Tinha lavado o cabelo nas casas de vapor que
existiam no districto, desenriçara-o e pusera um pouco de perfume doce de
baunilha por todo o corpo. Tinha esperança que voltaria a ver o seu querido
Samiel…! Seria que a mãe finalmente consentira em conhecer formalmente a
família dele? Que poderia dizer ao jovem, formoso e simpático pasteleiro?
A tia esboçou um sorriso ao reparar que a princesa usava
uma bonita túnica salgado da cor da turquesa a cobrir os seios bonitos como duas
laranjas suculentas. O ribombar
constante dos tambores e das alegres flautas acompanhava os guardas que, ora
montados em cavalos monstruosos, ora a tocar os instrumentos, caminhavam em direcção
às escadas de mármore que davam para a saída sul do complexo divino e
senhorial. Supostamente, os tambores, as trombetas e as flautas tocadas num
salmo protegiam e abençoavam as seis senhoras que se afastavam de
Suryadevnahutbal (o Sítio em que O Sol Abençoou). A própria Imperatriz juntou
as mãos a um espinho de agave, causando um pouco de sangue em ambos os dedos
anelares.
- Que os Deuses nos abençoem nesta viagem tão perigosa, a
mim e à minha humilde sobrinha, Princesa Eris Di Neptunus. – Com estas mesmas
palavras cantadas, arrancou um pedaço do cabelo arruivado e dourado da princesa,
em seguida queimando-o num pequeno incensório em forma de coruja. Tudo isto
acompanhado com o sangue das seis damas e os espinhos do agave. A partir de aí,
as nuvens que outrora ameaçavam o alegre passeio da Imperatriz e da sua escolta
(oito guardas, duas aias, as damas-de-companhia da Princesa e a própria Eris) desapareceram
por completo. Melnjar VI ainda tinha um pouco de poder vindo dos seus antepassados
dragões emplumados, metade homens, metade serpentes. Ou seria por causa dos quatro guerreiros
músicos que Jutierkajam, Jetwas e a sua mulher Shamanarta tinham decidido que
não iria chover na viagem de quinze quilómetros até ao bairro Chinês…?
Ao atravessarem os portões, Sua Divina Alteza soltou um
grande suspiro:
- Há décadas que não saía de Suryadevnahutbal. Só quando
chegaste de barco há dez anos atrás é que saira para te conhecer, filha. –
Parecia um pouco exausta com o pequeno encantamento, ao abanar-se com o leque
de penas de quétzal.
Com ambas separadas por uma parede fina de pele de jaguar
que determinava a posição de tanto a Princesa como Sua Divina Alteza, Eris
lançou um olhar discreto para as janelas, cobertas com cortinas púrpura.
Ninguém poderia ver o rosto da Princesa. No entanto, a Sobrinha da Imperatriz
gostava tanto da Cidade dos Deuses que não podia deixar de ficar curiosa.
- Tia…a que se
deve esta saída momentânea do Lugar que a Senhora Bilafassabnsair escolheu para
Ser o Lar d’Ela?
A mulher mais velha soltou uma risada paciente. No
entanto, por detrás do leque e da pequena cortina de pele, os olhos azuis
brilhavam com um ar de desprezo. Enquanto que a mulher mais nova tinha um belo
cabelo louro arruivado, a Imperatriz usava um cabelo negro, severo, quase tão
negro como a noite. Porém, não tinha o aspecto trigueiro e suave das mulheres
da plebe. Eris, a sua Sobrinha, estava a tornar-se demasiado popular na Corte
de Suryadevnahutbal, precisamente pela sua insistência no bom-gosto, nas
leituras, e, claro pela sua beleza encantadora. A Princesa era exactamente o
pólo oposto de Sua Divina Alteza. Enquanto que a Imperatriz pensava que os
poemas eram algo digno apenas de cerimónias religiosas e de Estado, Eris tinha o hábito de recitar
poemas a toda a hora. Adorava fazer peças teatrais com as aias e gostava de
apanhar ar fresco…Algo que fazia com que a maior parte dos sacerdotes
franzissem o sobrolho. Mas a verdade é que ela era calma, sorridente e
graciosa: três qualidades que obviamente faziam com que ela fosse a preferida
dos altos-oficiais do Exército da Guarda Imperial.
Sua Divina Alteza achava que aquele comportamento de
nunca aceitar um único pretendente de linhagem nobre, mesmo pela via
tradicional de uma casamenteira, era recato a mais. E Saburou Di Euncätzio, o meio-irmão
de língua bifurcada de Samiel, sabia como dar a informação exacta à Imperatriz
sem levantar quaisquer suspeita das açafatas. Escandalizada com aquele
comportamento da Sobrinha, a Imperatriz mandou uma carta a Yee Di Euncätzio.
Preferia que ela se casasse com um filho legítimo de uma família talentosa e
burguesa…do que ser a amante de um homem sem berço, um filho adoptado pela
porta do cavalo!
Mas, mais do que isso, havia algo nos olhos azuis que
inspirava medo. Era o tipo de sentimentos mesquinhos que uma filha não quer
numa mãe.
- Acontece que, através dos meus espiões, soube que há um
homem da classe burguesa que está interessado em ti, filha. Por isso, decidi
que seria melhor conhecer a família do teu pretendente do que estar a perder
tempo a ouvir coisas alheias.
Um homem da classe burguesa?! Eris ficou radiante de
contentamento, ao pensar que aquele homem era o formoso e jovial Samiel. Como
estava enganada! Antes mesmo de sair de Suryadevnahutbal, ela tinha a ligeira
impressão que eram os Di Euncätzio quem elas iriam visitar, mas nunca pensara
que a tia estaria a planear casá-la com um dos filhos do Mestre Di Euncätzio.
Sim, ela estava de todo convencida que iria encontrar-se
oficialmente com o seu querido harpista.
Ao chegarem ao bairro Chinês, foram recebidas por uma
multidão de imigrantes das Ásias, expectantes. Porque seria que a carruagem de
Sua Divina Majestade se tinha dignado a passar por eles?
Uma bela senhora de origens Chinesas abriu os portões de
trás da pequena vivenda onde vivia Yee e as suas cinco mulheres mais os seus
filhos. Era engraçado, pensou a jovem Princesa: a mulher, apesar de não se parecer
nada com Samiel, tinha os mesmos olhos
verdes. Eram muito bonitos, aquelas pérolas que se viam por detrás do véu
delicado de seda perfumada… Tinham um ar tão amável, tão maternal!
- Sedes bem-vinda à Pastelaria Di Euncätzio, Vossa Divina
Alteza e Alteza Imperial! – Fez uma
vénia extremamente formal a ambas as mulheres, quando estas desceram da
carruagem. – Peço-vos muito humildemente
que me acompanhai até à sala de espera.
Eris sorriu, ao vislumbrar outra mulher de olhos negros e
rasgados, com as mesmas vestimentas que a primeira. Ambas pareciam doces e
muito esbeltas, embora ela só conseguisse ver os cabelos negros e exuberantes. Parecia
quase inacreditável que fossem as esposas de Yee Di Euncätzio. Pelo pouco que
tinha ouvido falar dele, o Mestre Di Euncätzio não era exactamente alguém sociável.
Samiel tratava-o carinhosamente a ele como o “Velho”. Só isso dava uma pista óbvia de como era o
cobarde chefe da família de comerciantes.
Porém, ao chegarem ao opulento e colorido átrio, ela
ficou encantada…! Alguém estava a tocar um alaúde Chinês.
- Princesa…A sua presença ilumina esta casa Chinesa. – A voz
sabia falar Bellante vernacular da Cidade dos Deuses, mas não era a de
Rwebertan Samiel Di Euncätzio.
- Hime wa koko ni
aru…arimasen ka? – Outra voz de homem, mais velha, desta vez em Japonês, numa
corrente de sílabas quase incompreensível para a princesa. A princípio, pensava
que era o “Velho”, mas quando uma mão feminina, mas com unhas compridas e
esquelética, ligou o óleo que percorria a casa, iluminando os candeeiros de
cristal, ela reconheceu os dois Encantadores das Montanhas Japoneses.
Arqueou as sobrancelhas, ao ver que os três olhavam para
ela, deslumbrados com a beleza dela.
O do meio assobiou num tom rude:
- Erisu-Hime kawaii wa desu, nee?
O mais novo soltou uma risada quase arrepiante e falsete,
enquanto mostrava os seus dentes afiados. Mas o mais surpreendente é que era
ele quem estivera a tocar aquele Rhuan.
A Princesa nunca esperaria isso de um
homem que parecia ter a mente ligeiramente perturbada.
- Vá lá, cavalheiros, não façamos disto um circo. Afinal
de contas, estamos na presença de senhoras da corte sagrada de
Suryadevnahutbal.
Uma mulher, alta com lábios sensualmente vermelhos, vestida às maneiras de uma senhora de corte Japonesa com treze camadas de roupa, apareceu, descendo as escadas em caracol em cujos corrimões estavam empoleirados os três filhos: Yamelino, Hayabusa e Saburou. Eris ficou um pouco enojada quando a Senhora Uarasaki sorriu: tinha os dentes afiados e negros, como o carvão.
As quatro damas da
corte recuaram, um pouco assustadas e repugnadas, pois a imagem da Senhora Uarasaki assemelhava-se aos olhos delas a uma prostituta. Tentaram implorar à
Imperatriz para que se retirassem de imediato para o districto sagrado, antes
que ficassem impregnadas com tanta imoralidade burguesa. Mas Sua Divina Alteza
estava sob a influência dos dois Demónios da Inveja e da Vaidade.
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