domingo, 1 de junho de 2008

O Senhor do Castelo (Parte III)


Terminado o delicioso pequeno-almoço, Samiel já ia começar com as suas artes de sedução, quando Jerininantus apareceu de repente, um pouco preocupado e os olhos azuis a reflectirem um ligeiro receio.
- Senhor, caro Mestre Samiel! – Disse ele, a recuperar o fôlego. – Preciso de falar convosco! É importantíssimo.
Samiel levantou-se rapidamente, ávido e curioso por saber as novidades e o que teria acontecido na sua ausência, enquanto estava ocupado a fingir ser um homem de bom coração para Eleonora acalmar-se.
- De que estás a falar, Jerininantus? – Perguntou ele, interessado.
- Jurai não vos enraivecer. – Disse ele numa voz inquieta.
Inclinou-se diligentemente e cautela até estar ao nível da altura do patrão, e com um ar de conspiração, segredou alguma coisa ao ouvido de Samiel.
Passado algum tempo, um ou dois minutos depois, soaram algumas vozes a anunciar a vinda de Anúbis, Indra e a sua comitiva.
Samiel acenou com a cabeça e sorriu. Eleonora não tinha a certeza, mas tinha a impressão de tê-lo ouvido murmurar “Perfeito” enquanto o bandido acariciava com os dedos magros o seu tigre, que ronronava ternamente em resposta ao dono.
- Então...compreendeis porque é que eu...
O cobarde servo já ia dizer mais alguma coisa quando o sempre calmo e frio bruxo interpelou-o, levantou-se da cadeira dum salto e deu uma palmadinha cúmplice nas costas de Jerininantus.
Eleonora franziu o sobrolho, desconfiada, e tentou aproximar-se com cautela discreta para escutar melhor a conversa.
O que estariam aqueles dois a tramar?
Com um ar frio e malévolo, Samiel estalou prontamente os dedos, e logo a louça foi arrumada numa nuvem de fumo pelos fantasmas das mulheres escravas.
Depois, ergueu o olhar autoritário, para Jerininantus.
- Não faz mal, convida essa boa gente para o meu castelo, ordena que tenhamos um bom café; excelente presunto; chocolate; figos; o melhor vinho e das melhores iguarias na sala de estar. Procura divertir todos com as mais belas bailarinas e os meus pássaros musicais; mostra a todo o séquito os quartos, os jardins, os corredores. De facto, faz com que o meu Indra esteja demasiado ocupado e contente para não dar falta da nossa querida princesa. – Ordenou ele de forma calculista. – Mas, faças o que fizeres, não menciones aquilo que nós sabemos e do qual não podemos falar com gentalha divina. Entendido?
Jerininantus beijou respeitosamente o anel do seu senhor, levantou-se, fez uma leve vénia quase militar e retirou-se solenemente pelas portas principais, sem dizer uma única palavra.
A rapariga olhou com nojo e desprezo para o homem. Afinal, o que é que ele pretendia ganhar com todos aqueles jogos manhosos de “faz-de-conta”?
Obviamente que não era nada de bom, senão, ela estaria mais aliviada.
Samiel pensara mal ao julgá-la inocente e ingénua. Na verdade, ela era bastante esperta. Pelo menos era o que lhe diziam.
Então, levantou-se de braços caídos, muito chateada, com uma coragem digna duma rainha, e lançou-lhe um olhar amargo.
- Chega, Assassino do Amor! – Disse ela. – O que é que quereis de mim...?! Dizei imediatamente! Pensais mesmo que eu sou medrosa ou burra o suficiente para acreditar na vossa língua peçonhenta e venenosa, é?
Samiel, concentrado nos seus planos, nem reparou nela, e, mal a ouviu, soltou uma gargalhada maldosa, esboçando um sorriso, como uma fissura num icebergue que fez com que a desconfiada rapariga recuasse uns quantos passos.
Com a boquilha de prata presa nos seus lábios, ele sorriu divertido com o aparente desconforto dela.
Avançou lentamente até ela, e, ao ver que Eleonora finalmente tremia de medo, pousou as suas mãos gélidas e frias cobertas pelas luvas nas costas frágeis da rapariga, quase como que num gesto meigo.
- Não há dúvida que és uma autêntica filha da grande Rainha Melnjar, minha querida, esperta e pequena Eleonora. – Ela fechou os olhos, por um momento, tentando manter a paciência e evitar dizer algum insulto ou calúnia, tentando ao mesmo tempo não olhar para o atroz rosto de Samiel, que sorria maliciosamente. – Vejo que não consigo mudar a tua opinião acerca de mim. É uma pena. Talvez num outro dia, com mais tempo.
O feiticeiro suspirou com alguma leveza e olhou para o Tigre da Escuridão, que agora estava adormecido num sono profundo, deitado na carpete, como sempre.
- Não é engraçado como a vida tem certas ironias? Se eu nunca tivesse conhecido a Eris, nunca me teria tornado num dos homens mais poderosos de toda a Atlântida e jamais me aperceberia da importância do espírito. Cada vez que mato uma mulher, penso nela, naquele dia em que ela me fez....Desaparecer, extinguiu o meu corpo verdadeiro, a minha matéria, deixando apenas o espírito. E, de cada vez que eu devoro o sangue e a carne duma mulher, a minha antiga beleza de jovem anjo reconstitui-se. Claro que, da primeira vez que o fiz, pensei que iria perder tudo! Mas, foi por causa daquela mulher e daquele doloroso dia que eu percebi a importância do espírito e da forma como manipular a Atlântida, de a governar tudo e todos sem ser preciso sequer sair do castelo, com uma única e rara excepção: as mulheres de sangue prateado. Aquelas malditas das tuas irmãs são a única forma de me derrotar em combate, querida Eleonora. Mas, … tu não compreendes, pois não? Que o mundo está cheio de inimigos, inimigos que te querem…Magoar, fazer-te muito infeliz, …
Enquanto dizia isto, o manto preto de Samiel roçava sinistramente dum lado para o outro, de encontro ao chão, enquanto as suas botas ouviam-se como assustadores sinos, prenunciadores da desgraça que se poderia vir a abater sobre a Atlântida.
«Se eu conseguir induzir uma que seja a deitar-se comigo, casarei com ela, e, numa só noite, sugarei toda a sua energia vital até que esta não passe duma linda marioneta, e, aí, poderei soltar o meu espírito e usar o corpo desta a meu favor, posso ascender á mais perfeita das imortalidades, poderei livrar-me de todos os meus adversários.
Chegarei onde quiser, verei tudo e todos. Serei imparável e imbatível, até que o idiota do teu paizinho ajoelhe-se perante a minha pessoa! Tão perfeito como um deus qualquer. Aí, eu restaurarei o meu corpo ao normal e reinarei em todos os domínios atlantes que me pertencem por direito. É uma visão ideal. O problema é que o corpo e espírito dessa rapariga nunca me aceitam tal e qual como sou. É por essa razão, devoro a sua carne para me tornar ainda mais poderoso. Poder e exterminar aqueles que me desafiam e tentam cobardemente apunhalar-me pelas costas! É tudo o que me interessa.» Parou abruptamente, acabando com aquele devaneio aterrorizador. O seu rosto ostentava a mesma expressão trocista e cínica que Eleonora lhe conhecia desde criança.
Ao apagar o cigarro e acabá-lo com elegância, pousando-o num cinzeiro de cristal em forma da cabeça dum leão chinês, prestes a engolir as cinzas a queimar de incenso e hortelã-pimenta, disse:
- Claro que, para isso, tenho de aprender muito. Mas, em todos estes anos, as minhas pesquisas sobre como possuir um corpo de outrem e outras magias universais revelaram-se sempre insuficientes. Por isso, fui obrigado a admitir que preciso de uma espécie de professor. E é aí que tu entras, ò meu rostinho de ouro. Que conheces tão bem o reino dos sonhos e podes entrar na mente de qualquer um sem qualquer dificuldade. Não é por acaso que te chamaram da “Sonhadora”.
Ela virou-se friamente para outro lado, completamente desinteressada dos planos megalómanos do bruxo. Com os braços cruzados, nem reparou que o felino de Samiel acordara para estar a passear entre as pernas suaves e bem esculturais dela.
- Eu não tenho medo de vós… – Disse ela receosa, tentando não olhar outra vez para Samiel, que estava a uns perigosos centímetros do seu rosto, tão perto que ela conseguia ouvir a respiração ofegante, mas gelada dele. – É só que eu nunca trairia as minhas irmãs para fazer parte dum dos seus diabólicos truques!
Eleonora tentou escapar do tigre, mas ele era tão grande, e com aqueles grandes olhos redondos que, ou eram azuis, ou vermelhos, ela sentia-se prisioneira do bruxo!
Inesperadamente, Samiel passou-lhe uma mão enluvada pelo rosto, um gesto que teve bastantes semelhanças com as carícias de Indra.
- Não sejas idiota, minha bela Eleonora. – Disse ele, numa voz quase doce e sedutora. – Eu posso dar-te tanto...
Com as mãos pousadas cobertas pelas luvas de cabedal nas mãozinhas delicadas da ondina, o feiticeiro olhou ternamente para ela.
O brilho amoroso dos seus olhos verdes encantava, lentamente, a pobrezinha, que convencida pelas palavras suaves e queridas de Samiel, já sucumbia à sua vontade. Já não eram os mesmos olhos frios e repletos de maldade que tinham ameaçado torturar os próprios ajudantes mais fiéis. Não, eram olhos dum homem experiente e que sabia o que queria, onde o podia achar e como o fazer.
- Oh...Que palavras doces...! – Exclamou ela, aproximando-se do corpo predatório e viril do Assassino do Amor. – E que corpo robusto...Quem me dera que o meu querido Indra tivesse a vossa discrição e corpo tão forte!
De repente, lembrou-se de Indra, e teve pena dele, que não devia estar a traí-lo com aquele homem horrível! Era um namorico desavergonhado, e, ainda por cima, que vinha contra tudo o que a sua mãe Melnjar lhe ensinara.
Não podia fazer uma coisa daquelas a Indra, era contra a sua própria natureza, e, mais do que tudo, contra os seus instintos femininos.
Eleonora sabia que o Assassino do Amor ainda poderia a vir enganá-la com algum truque ou magia qualquer; porém, ele continuava a olhá-la com aqueles olhinhos tão arrebatadores e masculinos....Mais um pouco e ainda não aguentaria.
O seu coração confrangia-se um pouco, e, no entanto, as palavras de Samiel pareciam tão verdadeiras....
Suspirou, presa num complexo dilema, com a mão encostada no bonito queixo de rapariga.
Recuou mais um bocado, já livre do animal de estimação do Assassino do Amor, que agora ronronava não nas suas pernas, mas sim as do nefasto amo, que sorria para o leal tigre com um ar satisfeito.
Eleonora abanou a cara, um pouco a medo, assustada com a ideia de poder ser uma traidora aos seus pais.
- Não o faria! – Disse ela num tom hesitante.
O tabaco de Samiel veio subitamente à sua cara castiça e perfeita, num sopro, quase que o expelisse e assobiasse para o ar.
Com o comprido objecto prateado entre os dedos da sua mão direita, ele tocou levemente nos cabelos encaracolados, quase como se estivesse a brincar lascivamente com eles, e aproximou-se novamente dela, com um ar atrevido, sorriu.
- Não faríeis o quê, vida minha? – Disse ele num tom hipócrita.
- Ajudar-te e ser morta no fim! – Retorquiu importunada. – Sei muito bem que os bruxos raramente são honestos e sinceros com as mulheres.
Ele largou repentinamente o pau feito com madeira refinadamente banhada em prata, que caiu de forma inócua no chão.
Pelos vistos, Samiel não admitia ser desconfiado com tais blasfémias, e, pelo seu ar, parecia bastante irritado pela rapariga ter falado acerca dos rumores e nomes que lhe chamavam.
- Disparates! Como é que uma princesa tão inocente, inteligente e bondosa poderá acreditar em tais calúnias espalhadas por nereidas cruéis e venenosas das montanhas?! – Comentou rispidamente. – A Magia Negra nasce limpa.
E, continuou a seduzi-la com os seus encantos de aristocrata, mas, por mais que tentasse, Eleonora conseguia sempre ser fiel à sua castidade e guardar-se para apenas os lábios e braços de Indra.

2 comentários:

Jotacarlos. disse...

Olá,
a mágica continua a existir em teus sonhos.
Valeu.

Anónimo disse...

Seres mágicos que desfilam tão bem descritos por você aqui e uma verdadeira epopéia Atlante.

Um abraço.