terça-feira, 4 de dezembro de 2007

"A Píton com Dentes"


A força de luta de um bruxo reside no golpe que o faz arremessar o seu florete ou bala ou tridente. Se conseguirmos imaginar uma lança, um aríete ou um martelo com a potência de quase metade de uma tonelada dirigidos por uma mente fria e silenciosa, podemos imaginar vagamente como era Samiel quando lutava. Bem, digo-te que um bruxo da minha idade pode derrubar cinco fadas de uma só vez, e o Mestre Samiel tinha para aí trinta e quatro anos, segundo as crónicas desse tempo. Quando lutava ou andava à caça, nada mais ocupava a sua cabeça. Os objectivos tinham de ser cumpridos, e, calculosamente, dirigiu o seu primeiro golpe para o centro da multidão que rodeava Anúbis – e que num segundo, foi desmobilizada em silêncio.
As dríades voltaram ao seu aspecto normal e fugiram a sete pés, gritando:
- O Assassino do Amor! É o Assassino do Amor! Fujamos irmãs!
Várias gerações de bruxas, tanto fantasmas, fadas e cyborgs foram assustadas, o que as levava a comportarem-se melhor, diante das histórias que ainda se conta de Rwebertan Samiel Di Euncätzio, o assassino nocturno que se podia esgueirar ao longo dos ramos tão silenciosamente como o musgo a crescer e que tinha levado a grande Eris. Do Mestre Samiel, que se conseguia dissimular ao ponto do barulho dos pnéus da sua limusina a rodarem serem confundidos com o canto dos grilos e das cigarras à noite, tomar a forma de qualquer criatura que alguma vez habitasse a Dimensão Mágica e que conseguia enganar até as raparigas mais espertas e sábias, até que o suposto grilo as apanhava numa brisa gélida de Inverno, muitas histórias e lendas se contam acerca do Assassino do Amor. Samiel é tudo o que uma rapariga atrevida pode recear na Floresta de Cristal e no Vale da Morte, uma vez que nem eu, nem ninguém conhece os limites do poder dele, ninguém consegue olhá-lo nos olhos e nunca ninguém sairá vivo do seu beijo fatal. O que torna uma lenda urbana de “bicho-papão” ainda mais assustadora é de não sabermos como o fazer parar! Toda a gente sabe disso. Por isso elas correram, aos tropeções com pavor, para as seguras árvores e ervas altas.
Anúbis respirou de alívio, o seu escudo de defesa era mais espesso que o de Néftis, mas tinha sofrido terrivelmente durante a luta. Depois, Samiel abriu a boca pela primeira vez e proferiu uma palavra longa e assobiada; ao ouvirem-na, todas as ninfas que estavam afastadas, a fugir espantadas, pararam estéticas onde estavam, aninhadas e encolhidas, a tremer de medo. As ondinas que moravam no lago e as dríades que estavam perto dos juncos interromperam a gritaria. As salamandras juntaram-se silenciosamente a elas, parando as suas tentativas infrutíferas de fazer fogo para espantar o Assassino do Amor. Toda a gente sabe igualmente que nós, Bruxos, preferimos locais escuros e com pouca luz, pois o Mestre Samiel, forçado a viver nos profundos subterrâneos do Vale da Morte durante tantos anos, desabituou-se do Sol, e qualquer contacto a ele era um perigo enorme! Quanto às sílfides, ao ouvirem com os seus apurados ouvidos o bater do coração de ferro do feiticeiro, também ficaram hipnotizadas. Eis o porquê do Rei dos Bruxos ter sempre um coração de ferro: as Fadas detestam o ferro, é o seu calcanhar de aquiles, por assim dizer.
No silêncio que pairava sobre a cidade, a pequena sereia quase que também cessara a sua luta para saír da caserna, mas logo acordou do feitiço.
Conseguiu ouvir Néftis a secar os seus longos cabelos com o calor do seu bafo e de seguida, o brado irrompeu novamente.

Assassino do Amor, assassino do amor!
Qual será a tua vítima desta vez?
Sempre a enrolar os seus anéis!
Sempre a enrolar os seus anéis
nos seus patéticos dedos magros!

Tenta apanhar-nos monstro malvado!
Tenta apanhar-nos, assassino do amor!
A que apanhares, patético homenzinho,
dar-te-á um beijinho!
Mas tua esposa morta, dar-te-á um puxão de orelhas!
Ah, ah, ah! Ah, ah, ah! [1]


Guinchavam à medida que saltavam nos ramos, dando berros como crianças infantis e mimadas.
- Meu filho, tira a sereia da armadilha; eu já não consigo aguentar nem mais um minuto nesta floresta de loucos! – Disse Néftis irritada. – Pega nela e vamos, podem atacar de novo.
Enquanto isso, Samiel certificou-se que as dríades fizessem pouco barulho.
- Só se moverão quando eu mandar! Quietas! – Ordenou ele.
Assim que o disse, toda a clareira permaneceu novamente em silêncio.
Olhou para todas as Fadas imóveis como estátuas, abraçadas umas às outras. A sua voz tinha algo de autoritário que as fazia parar, o que era é que ninguém saberá. Esboçou um sorriso triunfante, e, dirigindo-se para Néftis, este disse: não me foi possível chegar mais cedo, mas penso que ouvi o seu pedido de socorro.
A deusa corou um pouco ao ver que durante a batalha, tinha sido cobarde ao chamar por um homem.
- É...é possível que tenha gritado durante a luta. – Respondeu ela meio envergonhada. – Anúbis! Meu filho, estás ferido?
Lambendo a pata em que se tinha magoado, o jovem deus soltou uma valente risada, e sorriu para a sua mãe-galinha. Ele não era rapaz que chorasse por uns meros cortes.
A seguir, lambeu o rosto de Néftis como apreciação pelo seu enorme afecto.
- Não garanto que não me tenham feito em milhares de cachorrinhos. – Disse ao tentar levantar-se para mudar para a forma humana. – Wow! Aquilo é que foi uma grande batalha! Acho que te devemos a vida, Mestre Samiel.
O criminoso revirou os olhos em forma de desprezo. Ele odiava cenas comoventes. Limpou a capa negra com as mãos e embainhou a sua espada de novo friamente.
- Não interessa. Onde está a ondina?
Foi a vez da sereiazinha dos mares do Atlântico falar, muito chateada, por ninguém lhe prestar atenção.
- AQUI! Numa armadilha, não consigo soltar-me! – Gritou a sua voz dentro do casebre. – Mestre Samiel! O meu senhor à espera de quê? Senão transformo-me numa fantasma!
Ouviu-se também os zumbidos das vespas furiosas:
- Tirai essa intrometida daqui! Daqui a bocado, ainda esmaga a nossa rainha!
O feiticeiro pôs as mãos nos bolsos, ajeitou a capa e riu-se.
- Ah! – Disse Samiel. – Afinal tens amigos por toda a parte, minha menina! Afasta-te! Escondam-se, ò pequeno Povo Amarelo, vou derrubar a porta.
Com um pequeno, calculado e rápido golpe dos “Dentes de Víbora”, duas adagas letais longas e compridas na dobradiça, ele conseguiu reduzir a porta em pequenas partículas de pó.
A sereia saiu pela abertura e foi logo recebida de braços abertos por Néftis, que a encontrou muito fraca e com o cabelo despenteado e cinzento.
Logo a abraçou com delicadeza, e acarinhou a pobrezinha, como se fosse sua filha. Ficou atónita ao ver o estado em que ela estava, e de olhos arregalados, lançou um ar preocupado enquanto tentava pentear o longo cabelo preto da sereia.
- Céus, querida! – Exclamou ela. – Que te aconteceu, até parece que um vendaval passou por esse cabelo!
A sereia agradeceu tanta ternura, e conteve as lágrimas.
- Estou esfomeada, dorida, mas nem uma nódoa negra, Vossa Senhoria. Não precisa de se preocupar. – Dissa a rapariguinha. – Eu estou bem. Mas...Oh, Vossas Senhorias estão feridos!
Anúbis sorriu de contentamento, esfregando as mãos, e apontou para um grupo de cinquenta dríades mortas.
- Não somos os únicos. – Comentou a rir-se.
- Não faz mal, não tem importância! – Disse Néftis muito comovida, com as lágrimas a rolarem da cara. – Logo que cheguemos à Cidade dos Deuses eu preparo-te um bom chocolate quente com bolinhos de queijo fresquinhos.
O jovem deus separou as duas raparigas com a sua força divina e disse num tom seco:
- A mãe já se esqueceu porque é que viemos para cá? Viemos para entregar ao Mestre Samiel a sereia. Afinal, é ele ou não que lidera esta operação?
Um sorriso opurtinista passou no rosto viperino do vilão, e acenou para que a rapariga viesse com ele sem oferecer resistência.
- Estais absolutamente correcto, jovem senhor Anúbis. – Disse num tom muito gentil. – Agora, minha querida, vem cá para os braços do teu senhor...
A rapariga quase sem forças para resistir logo buscou refúgio no seio, cheia de medo, e gritou tão agudo quanto uma divindade dos mares sabe gritar, tentando não olhar para os olhos de Samiel. Começou a derramar lágrimas doces no regaço de Néftis
- PÁRA, PÁRA, monstro cruel! – Soluçou ela. – Chamo-me Claudinitiana! Meus senhores, protegei-me daquele demónio!
Claudinitiana parecia mesmo desesperada por não cair outra vez nas garras daquele diabo.
Desta vez, a deusa recusou o abraço da sereia e empurrou-a para os braços do antigo e negro mestre.
- Talvez seja melhor confessares, Claudinitiana. – Disse ela com sinceridade.
Tudo parecia acabar mal, quando Anúbis sentiu algo pela pequena fada dos mares. Algo que nessa altura, ele mal conseguia explicar, mas que, de certa forma, o incitava para que Samiel não ficasse impune. Chama-lhe dever, chama-lhe até mesmo misericórdia, mas talvez ele estivesse apaixonado pela linda menina.
Mal o malvado ia se encontrar com o corpo da rapariga, um pesado machado de fogo quase lhe cortava a mão e o separou da sereiazinha.
Ao ver que estava a ser interrompido, ele pôs as mãos nas ancas.
- Ora Anúbis, mas que atrevimento o teu! – Exclamou maldisposto. – Essa rapariga pertence-me por direito! Cometeste um erro muito grave, meu rapaz!
Com o machado flamejante a proteger a sereia, Anúbis olhou com desprezo para o seu adversário. No entanto, estava preocupado que o Assassino do Amor simplesmente desfizesse o machado em pó.
- Olha lá, Assassino do Amor! – Disse num tom valente. – Tu...Tu...Tu já não tens presas que cheguem para sete anos[2]? E que tal se ela ficasse connosco nesses anos, e, depois, prosseguirmos com um julgamento justo e sem magia negra à mistura! Não te importas?
O Assassino do Amor virou a capa negra em direcção do vento forte, e, fingindo não estar irritado, suspirou com espirito desportista.
- Claro que não. – Disse calmo. – Dez anos a mais ou a menos...Não me importa o tempo que tenha de esperar para apanhar essa rapariga. Ela vai ser minha, custe o que custar!
Dizendo isto, dirigiu-se para a rapariga, e acariciou ternamente o cabelo preto da sereiazinha com a espada segurada pela sua língua de réptil bifurcada.
- Tu não vais ter os teus amiguinhos deuses sempre por perto, e, quando um dia isso acontecer, vigia bem as tuas costas, porque eu vou estar a devorá-las com azeite em postas!
Soltou uma risada.
Anúbis apontou o seu reluzente machado contra Samiel, olhando-o com desprezo.
- Deixa a sereia em paz! – Avisou o deus. – Senão...
As mãos do feiticeiro enganador automaticamente levantaram-se num acto de falsa humildade.
- Juro pela minha saúde que nada de mal acontecerá à rapariga. – Disse ele defendendo-se. Mas quando se dirigiu para a sereia, falou num tom interesseiro. – Até daqui a sete anos...! Mas agora vai. Vai dormir, pois a lua está a pôr-se[3] e a minha harpa não está destinada a tocar para pessoas como tu.
[1] “Tenta apanhar-nos” é um tema duma canção popular atlante muito famosa que se canta muito nas vésperas do Dia da Magia Negra para espantar o espectro do Assassino do Amor.


[2] Segundo os relatos históricos, Samiel foi banido por sete anos para o Vale da Morte ao se saber que queria culpar a naíade inocente. [3] Quando a lua se põe, no seu círculo internminável como o Sol, diz-se que ainda se consegue ver a silhueta de Samiel na lua a tocar a sua harpa mágica. Maldito aquele que o seguir, pois desaparecerá para todo o sempre!

1 comentário:

Arthurius Maximus disse...

O cara é mesmo poderoso e perverso. Pelo jeito, esse banimento não vai detê-lo por muito tempo.

PS: A Atmosfera da batalha foi muito bem criada.