sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

O que um Kulmabgigi tem de aguentar...

Estas singularidades nunca desaparecem com o tempo, e se passam, mesmo com anos e anos de experiência, uma pessoa nunca se esquece daquelas cicatrizes, que nos marcam profundamente a alma. Estas singularidades que falo, têm a ver comigo e quando me estabeleci na ilha de Melxocolatlbilar, situada no meio da baía que fazem a Cidade dos Deuses, o ducado de Shunamari e a Zona Histórica. É lugar calmo, e quase silencioso, cujos áceres me massajam a alma no Outono e os carvalhos inspiram a que escreva doces poemas nostálgicos sobre o amor que nunca tive. Há muitos anos, esta ilha era o único refúgio para aqueles que queriam fugir à guerra. Por vezes, é preciso termos uma espécie de lugar, só nosso, onde temos um pouco de paz, onde nos confiamos a nós próprios e aos nossos sonhos: um belo santuário, um conservado esconderijo, um recanto confortável, uma casa nas montanhas...o que quiserdes chamar-lhe, chamai. Esta ilha é tudo isso para mim e muito mais! Quando fecho os olhos, o meu coração leva-me a sítios que eu nunca pensei existirem. Por vezes, é inacreditável como a vida nos passa de raspão e nem reparamos nisso.
Uma pequena gruta à beira de uma cascatazinha onde corre uma água cristalina que se assemelhava ao canto fresco dos pássaros na Primavera. A ilha de Melxocolatlbilar tem a sua própria aldeia, com um pequeno templo, situado no cume de um agradável monte de onde se consegue ver a ilha inteira: a floresta e a aldeia. Cercado por pessegueiros, crisântemos, calêndulas, margaridas douradas, laranjeiras, pinheiros mansos e cerejeiras, o templo é uma maravilha, dedicado à paz declarada por todos os povos que habitam na Bellanária. Todos os anos, em Abril, vou lá acompanhada por um guarda-costas, para ver como os Humanos estão. Não sei do que é que gosto mais: se deles, ou dos seus sorrisos. A Primavera é de facto uma estação linda nesta ilha...as pessoas na aldeia são muito unidas - apesar de virem de diferentes estractos sociais.
Foi num destes dias que reconheci a palidez cinzenta do céu. Com um ar meio embaraçado, acenei com o meu leque cor de bronze com plumas brancas de cisne, sem mostrar o meu rosto branco.
- Parece que vai chover. - Murmurei, pensativa.
- Também não perdestes o mês de Abril, minha senhora. - Respondeu, cortesmente, o meu guarda-costas, armado com uma espada comprida de obsidiana, elegante, embainhada numa cinto de couro vermelho-escuro. O meu guarda-costas era um homem de braços invulgarmente compridos, e tinha um daqueles sotaques do Norte que me recordava dos tempos em que os Bruxos ainda mandavam em Cyborg Town. A sua voz era rude e áspera, e a minha túnica de cor das rosas contrastava com o preto da sua túnica. Apesar de tudo era um homem muito leal, e eu confiava-lhe a minha vida.
Descemos juntos as escadas de mármore branco. Nesta altura do ano, quando raramente se pensava em sacrifícios, era o vermelho das cerejeiras e das roseiras que substituíam o sangue dos Homens. O meu pesado cabelo louro roçava por vezes no chão branco, como se fosse uma extensão da minha própria túnica própria de sacerdotisa. Embora a Senhora Roshini nunca deixe o cabelo crescer e o prenda num complicado apanhado tipicamente do Norte, eu sou da opinião que toda a princesa, fada ou sacerdotisa deve deixar que a sua cabeleira atinja pelo menos o nível dos joelhos.
Embora não soubesse o nome dele, eu sentia-me segura ao pé dele, e o guarda-costas não era assim tão intimidante quanto parecia. Por isso, nem que fosse para conversar um pouco com ele, pois sabia muito bem que todos os anos, a Família Imperial da Bellanária mandava-se um novo e que não iria vê-lo por muito mais tempo.
- Quantos anos tendes vós, ò Kulmabgigi?
- Cento e cinquenta, senhora minha. - Foi a resposta dele, uniforme e honesta.
Foi então que percebi porque é que estava com um ar meio entediado e incomodado com a minha presença: devia ser um bruxo reformado e desonrado. A ideia de servir uma fada não lhe deveria agradar nada.
As luvas dele seguravam firmemente na espada de obsidiana - uma arma que apenas os que serviam o Império podiam empunhar. Em tempos de paz, uma pessoa sensata não pode simplesmente empunhar uma arma sem ser chamado à atenção pelo Império. De qualquer das maneiras, eu pressentia que este dia não ia ser de todo ordinário.
Ao acabarmos de descer o templo, o guarda-costas de imediato pediu a um escravo para alugar uma diligência para a senhora sacerdotisa, que estava com muita pressa. Entretanto, eu abanava graciosamente o leque, pois estava muito abafado naquele dia de Abril. As flores, o meu cabelo entrançado num emaranhado que chegava ao trilho de pedra cuidadosamente esculpido, numa pedra macia, cor de mel. A pequenez da minha mão segurava ao de leve o leque, e abanava-o, de um lado para o outro, como se fossem os ramos das cerejeiras a abanarem ao som suave e melífluo do vento.
- Ò Kulmabgigi, deixai estar o pobre do rapaz, que ele não vai para a guerra florida!
- Sei disso, minha senhora. - O guarda-costas fez uma vénia longa, curvando de forma bélica (como se eu Sua Majestade, o Rei dos Bruxos) as costas. O fulano lá que era simpático, era, mas enfim!
Quando a diligência lá chegou, ali mesmo a minha pessoa ficou importunada. Como é que era possível que fosse tão espalhafatosa? As pessoas iam logo pensar que eu estava cheia de fantasia para viajar em tal coisa!
Se calhar aquilo fora demais, mas tenho a certeza que dei uma enorme descompostura ao dono do transporte. Mas lá consegui viajar para o meu recanto especial. E ainda dizem que a guerra é um caos!

Bem, isto foi um pouco a parodiar o facto de que na Bellanária - ou como há quatro anos era conhecida, a Atlântida - depois da guerra de Poriavostin, em no início do século doze, as Fadas começaram a ganhar uma certa notoriedade e títulos de nobreza. Perguntei-me a mim própria o que seria de Claudinitiana depois do Assassino do Amor ter morrido, e não me consegui conter em escrever esta pequena coisinha de nada. O humour do Norte da Bellanária nesta anedota em primeira pessoa. É ainda hoje uma anedota muito popular em Cyborg Town, uma vez que a maior parte dos agentes da polícia secreta da SPV são Kulmabgigis - feiticeiros desonrados.

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