domingo, 24 de fevereiro de 2008

O Encontro (Parte I)

Nove da manhã. Samiel encontrava-se no grande trono de mogno verde-escuro, esculpido lugubremente com vitoriosas chamas de fogo, relâmpagos e ondas imbatíveis.
Ainda não tinha tirado o manto castanho-escuro de pele de urso que lhe dava um certo ar imponente e altivo da manhã e por andar por casa. No enorme escritório escuro, ele olhava, atento para uma pequena bola de cristal, e, ocasionalmente, passava a mão comprida e lívida com as unhas grandes e finas, quase como se estivesse a acariciar o esférico. Com a outra mão, envolta numa luva de couro de cor-de-vinho, segurava numa proveta com uma rolha lá metida, onde um gás com uma estranha propriedade fosforescente azul-marinho borbulhava ao contacto com extracto de diamante derretido a mil graus num recipiente de vidro igualmente estrambólico, com as formas curvilíneas duma lamparina. Conseguia-se ver uma pena a trabalhar por si própria, a anotar minuciosamente notas num pergaminho. Quando o papel do rolo acabava, este era assinado pela mão de Samiel e posto numa das enormes prateleiras de madeira de carvalho onde brilhavam sinistras linhas, curvas e contracurvas roxas e escarlate.
Estava um silêncio sepulcral, um tanto ou quanto inquietante, mas o astuto e maligno Samiel não se deixava abater por aquele ambiente claustrofóbico.
Na verdade, até gostava da escuridão. Habituara-se a viver com ela, e, só, naqueles raros momentos, apreciava ficar a trabalhar nas suas poções e feitiços sem uma única luz.
De súbito, ele escutou um som, uma batida meio trémula, que poderia ser confundido com o barulho dum pica-pau.
- Sim? – Disse ele friamente, na sua voz aguda e seca, ainda concentrado nas fórmulas.
Uma rapariga, de trajes esfarrapados e rasgados, com olhos lacrimantes e cabelo desgrenhado abriu ligeiramente as portas brancas. Estava completamente deplorável. As suas vestes amarelas-torradas não combinavam nada com o esgalgado corpo, repleto de cicatrizes e feridas profundas, traumas antigos de cruéis e longas noites de tortura. Se não fossem as suas mãos de framboeseiro, dificilmente se poderia dizer que aquela rapariguinha era uma fada. Pequena, e de cabelos roxos longos, a dríade caminhava em passos exaustos e descalços, o que lhe tornava ainda mais dolorosa a existência.
Nas costas, evidenciavam grandes marcas que alguém lhe tinha cortado as asas, e, nos pés, haviam duas correntes fulgurantes de ferro que lhe prendiam os movimentos. Como criatura vegetal, a pobrezinha gemia de dor sempre que dava um único passo, e esse feitiço cruel era exactamente para essa finalidade, apenas para a fazer sofrer ainda mais!
Este era o aspecto duma ninfa acabada de chegar a um mês ao Castelo Negro, e pelos vistos, ainda não se tinha acostumado às exigências de Samiel.
A quanto o espírito sanguinário e perverso do Assassino do Amor podia chegar...! Desculpava-se aos homens mais sensíveis que era apenas uma forma de garantir que as Fadas não ficassem furiosas….E que também não lhes escapassem das garras e atrapalhassem os seus planos.
De pele morena e bem contornada, a jovem parecia um peixe fora-de-água naquele ambiente escuro e demasiado humano para o seu gosto.
- Meu amo... – Gaguejou ela, quase como que a soluçar. – Estão aqui dois deuses que gostavam de ter uma audiência convosco. Mando-os entrar?
Os olhos, geralmente insensíveis e cínicos de Samiel ergueram-se para a pobre escrava e, por uns momentos, ela conseguiu ver uma ponta de satisfação nos lábios secos dele.
Acenou com o indicador esquelético para que a rapariga aproximasse mais, pelo menos tão perto que ela conseguisse ouvir a respiração do bruxo.
O que ela fez prontamente, e mal deu conta, os dedos do seu cruel amo acarinhavam o rosto frágil.
- Excelente, minha querida escrava. – Sussurrou num tom maldoso. – Vai lá chamá-los, sim?
Ela correu o mais depressa que pode e abriu de par em par as portas para que dois jovens bem feitos avançassem com receio uns passos, como se estivessem a espreitar. Anúbis e Indra mal podiam respirar, pois o cheiro nauseabundo do tabaco que Samiel fumava sentia-se por todo o castelo. De manhã, quando se tinham encontrado, não esperavam que os boatos acerca da nefasta atmosfera que se vivia naquela casa fossem verdade.
Pelos vistos, o Assassino do Amor gostava tanto da escuridão como da morte.
Quando entraram, viram que o enorme Tigre da Sibéria repousava no gelado tapete e espreguiçava ociosamente, soltando um enorme rugido de sono, mesmo ao lado de Samiel, que, algumas vezes, ainda lhe atirava com naturalidade um pedaço de carne crua, provavelmente uma perna de uma dríade ou a coxa duma ninfa.
Os deuses sentiam-se enojados e horrorizados com aquela visão terrífica, à medida que tocavam na sua própria pele de galinha para ver se o bruxo ainda não lhes tinha lançado um feitiço.
Aquele lugar era insuportável, no entanto, Samiel sentia-se completamente à vontade, afinal de contas, era a sua casa.
Ele levantou-se de um salto, e, com as mãos juntas agora ambas descalças ao nível da cintura, indicou duas cadeiras para os dois jovens se sentarem.
A seguir, com um sorriso falso, tocou minuciosamente um pequeno sino de bronze que estava colocado na mesa.
O Tigre da Escuridão, obviamente também se levantou, e, num gesto de carinho, ronronou gentilmente pelas pernas do hindu, que tremeu ao sentir o pêlo áspero e curto a roçar nas traseiras.
Samiel apertou vigorosamente a mão como se fosse um camarada de Anúbis.
- As minhas servis saudações, Anúbis e Indra. – Cumprimentou ele, bem disposto. – E, já para não falar de desculpas. Sinto muito por não apreciarem o meu estilo de decoração.
Os dois deuses trocaram olhares de desprezo entre si, um pouco tensos, uma vez que encontrar o castelo não tinha sido propriamente uma canja de de galinha.
Relutantes em sentarem-se, abanaram as orelhas, e, meio nervosos, acabaram por confessar em uníssono:
- Na verdade, Senhor Di Euncätzio...
- Quanta cerimónia, cavalheiros! – Interrompeu Samiel divertido. – Por favor, tratem-me por Samiel. Além disso, não sou assim tão velho como certas fadas mexeriqueiras dizem.
Nesse momento, um rapaz de catorze anos, de cabeça baixa, e não mais alto que os joelhos de Anúbis; entrou pela sala com uma bandeja de prata numa mão e uma ânfora de dois litros noutra.
Parecia um pouco deformado, mas fez questão de servir silenciosamente com um olhar agradável os dois deuses com duas taças de aguardente.
Com um sinal de Samiel com as mãos, o engraçado anãozinho foi-se embora por uma passagem secreta escondida intencionalmente nas prateleiras.
Os dois deuses olharam por uma última vez para aquela estranha criatura infeliz dum nariz de cinco centímetros e grande, de um cabelo ruivo e coloração vermelha na pele queimada.
O que é que lhe teria acontecido...? Sentiram um enorme dó do pobre coitado rapazinho de quarenta centímetros de altura. Seria uma das atrozes criações do Assassino do Amor?

1 comentário:

Anónimo disse...

"As minhas servis saudações, Anúbis e Indra. – Cumprimentou ele, bem disposto. – E, já para não falar de desculpas. Sinto muito por não apreciarem o meu estilo de decoração."

Falsidade pura... antevejo uma maldade prontinha para acontecer...(rs)

Muito bom!