terça-feira, 29 de maio de 2012

Lermmhiar o demónio da inveja II


Eris acordou a meio da manhã, completamente aparvalhada, com lágrimas nos olhos…Tinha sonhado que estava num campo florido perto do rio Gulmin, a colher umas frutas deliciosas da flor de maracujá. 
No rio, passava com algumas especiarias em direcção ao mar para trocar com os comerciantes Bellantes, um homem envergonhado do seu rosto, de chapéu a cobrir a cabeça, enquanto remava melancolicamente a seguir a corrente.
Um grande falcão atravessava os céus, enquanto os pinheiros sussurravam uma doce canção.  O coração dela tinha sido captado pela tristeza comovente do homem, simples e pobre a navegar no meio do rio de Shunamari. E o barco era tão negro como a madeira de mogno das raras árvores nas terras do Norte.
Ela estava a descansar na sombra do chorão, num dos jardins imperiais de Suryadevnahutbal, com os cabelos cor de cenoura deliciosamente soltos, a tocar no peito humilde e moço, oculto por uma túnica branca bordada com fios de ouro. Ao brincar um pouco com o véu, a jovem princesa perguntou-se quem seria o tal Encantador das Montanhas com o falcão peregrino e um cavalo tão pequeno e da cor da terra molhada. Os cavalos do Sul eram muito mais altos e descendiam de uma criatura híbrida de cavalo e de um leão. Mesmo assim, os cavalos dos nómadas Encantadores das Montanhas não deixavam de ter a sua própria beleza.
A verdade é que os gigantes cavalo-leões que os sacerdotes costumavam usar para se deslocarem entre as províncias eram mais intimidantes.  Pareciam-se com demónios, com as suas cabeças enormes de uma pele avermelhada e os dentes afiados.   
Porém, Eris podia perder-se nos Jardins de Jade do Monte do Sul – assim se chamavam os jardins imperiais – sem ter de cruzar-se com os guardas, feiticeiros brancos e imponentes que sabiam os segredos dos códices antigos e dos deuses Bellantes. Ainda bem que isso acontecia uma vez que ela achava os cavaleiros de Suryadevnahutbal extremamente maçadores. Os guardas eram de origens do sul. Alguns tinham cabelos castanhos, outros eram descendentes dos antigos povos do continente além-mar, do lado mais a oeste da grande ilha, outros eram Gregos…Alguns eram morenos, outros tinham a cor do chocolate no rosto e havia outros que eram um pouco brancos de pele…pequenos, altos de média estatura, a Princesa Eris sabia tudo sobre os homens, sacerdotes e guerreiros que trabalhavam em Suryadevnahutbal.
Mas eles não pareciam tão cativantes quanto os homens do Norte: os Encantadores das Montanhas, os comerciantes de Shunamari, os pescadores Japoneses, os homens dos bairros de má-reputação…Esses homens misteriosos, de roupas escuras e com armas que ela nunca vira em toda a sua vida.
Homens como Samiel, que não se importavam de conversar com a princesa normalmente, enquanto as flores desabrochavam perto dos portões principais de Suryadevnahutbal.
E, tal e qual como as flores que desabrochavam naquela primavera, ela descobrira (ao apaixonar-se por Samiel) que era feita de carne e de sangue, que o seu corpo era elegante e branco e que a maior parte dos jovens rapazes da Capital sonhavam em tê-la nos braços. Oh, como era bom mergulhar nas piscinas naturais e termais que eram usadas apenas pelas damas da corte, completamente nua, e deixar que as ondas acariciassem as pernas suaves, como se fosse um vestido de algodão a roçar nas ervas dos jardins imperiais.
Descobrira, através das palavras doces e estrangeiras de Samiel, que já não era uma rapariga, mas sim uma mulher. Que os seus braços eram delicados e que ansiavam ser segurados pelas mãos viris de um homem sedutor e viril!
Mãos que sempre nos seus sonhos ela via como as mãos de marfim, perfumadas em baunilha do pasteleiro Chinês. Brincava distraidamente com os cabelos, como se pensasse se alguma vez poderia estar com o seu querido anjo caído e exótico, com os belos cabelos cor de fogo e olhos verdes reluzentes…sem ter de se disfarçar de uma camponesa qualquer.
Nas mãos, tinha um dos muitos poemas escritos em Mandarim por Samiel. Eram canções que lhe incendiavam a alma.
Eris vivia num dos pavilhões principais, perto da entrada de Suryadevnahutbal, a Norte. As torres pintadas com a cor da turquesa do Pavilhão de Plasna conseguiam-se ver mesmo por detrás das copas das árvores. As janelas eram como belas obras de artes, formas ovais e pontiagudas: portadas de ouro com figuras em alto-relevo de deusas dos vários rios e lagos da Bellanária decoravam o paço das princesas e das damas da corte. A ramagem das amendoeiras, macieiras, oliveiras e limoeiros ocultava parcialmente o incrivelmente majestoso palácio.
Sob a sombra de alguns chorões, algumas donzelas brincavam nos lagos termais, com os longos cabelos alourados ou castanhos a esvoaçarem sob a calma brisa primaveril.    
A jovem deu-se conta de que os risos das raparigas aristocráticas já não atraíam mais a sua curiosidade. Se ainda tivesse treze ou doze anos, talvez iria ter com elas para chapinhar nas fontes termais da ilha. Interessava-se mais pelo mundo exterior do que pelas plantas dos jardins imperiais, que, verdade seja dita, conhecia desde que tinha dez anos como os dedos das suas mãos.
Sim, ela podia brincar com as donzelas de Suryadevnahutbal…Mas a poesia Chinesa escrita por Samiel; os doces e pastéis feitos pelas mãos experientes da Senhora Uarasaki; a música tocada pela flauta de Hayabusa; os pregões estrangeiros e em Bellante Padrão da Praça das Sedas no centro da Cidade dos Deuses; a própria vida campestre dos principados dos feiticeiros e sacerdotes…
Tudo isso encantava-a muito mais do que as fúteis brincadeiras das suas primas e damas de companhia.
Entretanto, veio uma experiente açafata, que ao carregar um tapete para que a jovem princesa não ficasse com as vestes sujas, lançou um olhar maternal em direcção à jovem princesa Grega.
- Minha senhora… - Inclinou respeitosamente a cabeça, ao estender o tapete na relva fresca. – Hoje vejo-a tão pensativa e melancólica…Podeis contar-me qual é a razão de tanto cismo?
- Provavelmente não é nada de vulto. Mas ultimamente tenho tido uns sonhos de uma natureza verdadeiramente perversa. – Confessou a Princesa Eris na sua voz doce, mergulhada num creme inocente e apaixonado de mocidade.
A açafata quase que deixava cair as tranças com umas madeixas prateadas, amarradas num carrapito típico de uma mulher casada.
- Mas que pensamentos imundos serão esses, senhora minha? – Perguntou num tom de horror. 
As faces da sobrinha do Imperador coraram como uma framboesa, muito envergonhada. Não fazia a mínima ideia de como haveria de responder a uma pergunta tão intima. Mas, por outro lado, aquela era a dama que sempre estivera com ela desde que Eris tivera chegado da Grécia há nove anos.
Soltou um longo suspiro, enquanto se contentava a contemplar a simplicidade aromática do chorão, uma árvore milenar, mas sempre triste e sem uma única flor para oferecer aos olhos de um ser humano, deus, demónio, fada, ou feiticeiro. Era como se a brisa acariciasse as folhas humildes, mas belas da antiga árvore. Fascinada pelo perfume magnífico que vinha das macieiras, ela pensou se não seria melhor contar a verdade.
Era difícil ficar séria quando queria era ser adulta e ao mesmo tempo uma pequena criança, ao inspirar os sabores das flores do final da Primavera, enquanto estava nos braços do bruxo.
- Bom, há um homem cujo amor e desejos são maiores do que qualquer feitiço ou bênção que as deusas da virgindade me pudessem oferecer. Sonho com esse fogo desde que ele…desde que ele pousou os lábios nos meus. – Disse a princesa, enquanto se refastelava. – Os poemas dele e a sua voz de mel cativam-me sempre que vou à pastelaria dos seus lábios… Sempre que penso nele é como se a Primavera se prolongasse!
- Deixai, por amor do seu tio e da sua tia, o Imperador e a Imperatriz que tanto vos estimam, esse amor impossível! – Exclamou a açafata, completamente chocada com as palavras da princesa.
Embora Eris fingisse que compreendera o que a experiente açafata lhe dissera, durante o resto do dia, a princesa fingiu que não tinha ouvido conselho algum. Respondeu discretamente a um dos muitos poemas de Samiel com as seguintes palavras escritas no dialecto Bellante do Norte:

Sob a sombra do chorão,
O amanhecer chegou aos meus olhos,
Com a beleza vi que a sua voz dourada,
É mais preciosa do que o coração
Oferecido em sacrifício no festival de Nagendra,
Sob a sombra do chão, colhi os molhos
Do maduro e húmido milho,
Ai, pobre e simples amigo
Será que haverá pior castigo,
Do que apreciar o desabrochar
Destas efémeras flores sem ti? 

Como sempre, mandou um pombo entregar a mensagem a uma das ruelas que davam para os bairros onde era a vivenda e pastelaria dos Di Euncätzio. A seguir, esperou pacientemente por uma resposta. Esperou durante horas ao pé da entrada de Suryadevnahutbal, subtilmente, por um mensageiro. Aonde é que estaria o delicado e cinzento pombo que entregava as cartas do Mestre Samiel?
Quando estava prestes a retirar-se para o salão onde todos os membros da família Imperial apreciavam um maravilhoso repasto, ela reparou numa ave com as asas a resplandecer no luar como ouro. À primeira vista, pensava que era o pombo do pasteleiro.
Como estava enganada: era o falcão do tal Encantador das Montanhas, com os olhos brilhantes e negros como o almíscar.  Ao aterrar nas grades, o falcão apontou com o bico afiado para um pequeno pergaminho. Atado com uma fita de seda vermelha, estava um frasco de perfume com uma rolha.
Eris, assustada com o tamanho da ave com asas com penas de ouro, recuou nervosamente. Com a outra garra, o falcão trazia o coração pequenino do pombo. Embora a princesa já tinha visto muitos sacrifícios humanos, ela considerava a matança dos animais algo demasiado bárbaro para ser visto pelos seus olhos femininos.
Teve um calafrio, ao ver que o falcão acarinhava com a cabeça as faces dela, como se dissesse para não ter medo dele. Encostou-se à manta dela, para não a magoar nos ombros. 
A seguir, entregou-lhe com a garra agora livre a mensagem.
Ela agradeceu a gentileza do bicho, enquanto se afastava para ler nos seus aposentos com mais privacidade. Talvez fosse da família Di Euncätzio, talvez fosse um pedido de desculpas pela rude demonstração de afecto com que o filho da terceira esposa do Pasteleiro Di Euncätzio declarara o seu amor. 
Porém, ao se encontrar a sós no quarto, descobriu algo mais escandaloso: os caracteres que estavam escritos no pergaminho eram em Japonês, e Eris, apesar de saber falar fluentemente Chinês, jamais tocara no assunto de aprender uma língua falada por pescadores, camponeses do norte e por feirantes!
Tapou a boca, um pouco repugnada e indignada pelo facto de um Encantador das Montanhas ser tão ignorante.
Com medo de que se espalhasse o rumor de que se estaria a encontrar com um homem rude e absolutamente deplorável, a princesa queimou a carta com a ajuda de algumas aias de companhia – aquelas em quem ela mais confiava.
Para quem está curioso o que estava escrito na carta, esta simplesmente dizia:

Perdoai um homem que nunca soube escrever poesia, muito menos pode comparar-se ao meio-irmão. Só sei de uma coisa: um dia, sereis a minha esposa, Princesa! 

Uma das aias tapou o nariz enquanto acendia a lareira.
- Que horror, esta carta cheira a sangue e a sopa de bacalhau! Que raio de homem é que tentaria conquistar Sua Alteza com este cheiro horrível?!

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