Eris acordou a meio da manhã,
completamente aparvalhada, com lágrimas nos olhos…Tinha sonhado que estava num
campo florido perto do rio Gulmin, a colher umas frutas deliciosas da flor de
maracujá.
No rio, passava com algumas
especiarias em direcção ao mar para trocar com os comerciantes Bellantes, um
homem envergonhado do seu rosto, de chapéu a cobrir a cabeça, enquanto remava
melancolicamente a seguir a corrente.
Um grande falcão atravessava
os céus, enquanto os pinheiros sussurravam uma doce canção. O coração dela tinha sido captado pela
tristeza comovente do homem, simples e pobre a navegar no meio do rio de
Shunamari. E o barco era tão negro como a madeira de mogno das raras árvores
nas terras do Norte.
Ela estava a descansar na
sombra do chorão, num dos jardins imperiais de Suryadevnahutbal, com os cabelos
cor de cenoura deliciosamente soltos, a tocar no peito humilde e moço, oculto
por uma túnica branca bordada com fios de ouro. Ao brincar um pouco com o véu,
a jovem princesa perguntou-se quem seria o tal Encantador das Montanhas com o
falcão peregrino e um cavalo tão pequeno e da cor da terra molhada. Os cavalos
do Sul eram muito mais altos e descendiam de uma criatura híbrida de cavalo e
de um leão. Mesmo assim, os cavalos dos nómadas Encantadores das Montanhas não
deixavam de ter a sua própria beleza.
A verdade é que os gigantes
cavalo-leões que os sacerdotes costumavam usar para se deslocarem entre as
províncias eram mais intimidantes.
Pareciam-se com demónios, com as suas cabeças enormes de uma pele
avermelhada e os dentes afiados.
Porém, Eris podia perder-se
nos Jardins de Jade do Monte do Sul – assim se chamavam os jardins imperiais –
sem ter de cruzar-se com os guardas, feiticeiros brancos e imponentes que
sabiam os segredos dos códices antigos e dos deuses Bellantes. Ainda bem que
isso acontecia uma vez que ela achava os cavaleiros de Suryadevnahutbal
extremamente maçadores. Os guardas eram de origens do sul. Alguns tinham
cabelos castanhos, outros eram descendentes dos antigos povos do continente
além-mar, do lado mais a oeste da grande ilha, outros eram Gregos…Alguns eram
morenos, outros tinham a cor do chocolate no rosto e havia outros que eram um
pouco brancos de pele…pequenos, altos de média estatura, a Princesa Eris sabia
tudo sobre os homens, sacerdotes e guerreiros que trabalhavam em
Suryadevnahutbal.
Mas eles não pareciam tão
cativantes quanto os homens do Norte: os Encantadores das Montanhas, os
comerciantes de Shunamari, os pescadores Japoneses, os homens dos bairros de
má-reputação…Esses homens misteriosos, de roupas escuras e com armas que ela
nunca vira em toda a sua vida.
Homens como Samiel, que não
se importavam de conversar com a princesa normalmente, enquanto as flores
desabrochavam perto dos portões principais de Suryadevnahutbal.
E, tal e qual como as flores
que desabrochavam naquela primavera, ela descobrira (ao apaixonar-se por
Samiel) que era feita de carne e de sangue, que o seu corpo era elegante e
branco e que a maior parte dos jovens rapazes da Capital sonhavam em tê-la nos
braços. Oh, como era bom mergulhar nas piscinas naturais e termais que eram
usadas apenas pelas damas da corte, completamente nua, e deixar que as ondas
acariciassem as pernas suaves, como se fosse um vestido de algodão a roçar nas
ervas dos jardins imperiais.
Descobrira, através das
palavras doces e estrangeiras de Samiel, que já não era uma rapariga, mas sim
uma mulher. Que os seus braços eram delicados e que ansiavam ser segurados
pelas mãos viris de um homem sedutor e viril!
Mãos que sempre nos seus
sonhos ela via como as mãos de marfim, perfumadas em baunilha do pasteleiro
Chinês. Brincava distraidamente com os cabelos, como se pensasse se alguma vez
poderia estar com o seu querido anjo caído e exótico, com os belos cabelos cor
de fogo e olhos verdes reluzentes…sem ter de se disfarçar de uma camponesa
qualquer.
Nas mãos, tinha um dos
muitos poemas escritos em Mandarim por Samiel. Eram canções que lhe incendiavam
a alma.
Eris vivia num dos pavilhões
principais, perto da entrada de Suryadevnahutbal, a Norte. As torres pintadas
com a cor da turquesa do Pavilhão de Plasna conseguiam-se ver mesmo por detrás
das copas das árvores. As janelas eram como belas obras de artes, formas ovais
e pontiagudas: portadas de ouro com figuras em alto-relevo de deusas dos vários
rios e lagos da Bellanária decoravam o paço das princesas e das damas da corte.
A ramagem das amendoeiras, macieiras, oliveiras e limoeiros ocultava
parcialmente o incrivelmente majestoso palácio.
Sob a sombra de alguns
chorões, algumas donzelas brincavam nos lagos termais, com os longos cabelos
alourados ou castanhos a esvoaçarem sob a calma brisa primaveril.
A jovem deu-se conta de que
os risos das raparigas aristocráticas já não atraíam mais a sua curiosidade. Se
ainda tivesse treze ou doze anos, talvez iria ter com elas para chapinhar nas
fontes termais da ilha. Interessava-se mais pelo mundo exterior do que pelas
plantas dos jardins imperiais, que, verdade seja dita, conhecia desde que tinha
dez anos como os dedos das suas mãos.
Sim, ela podia brincar com
as donzelas de Suryadevnahutbal…Mas a poesia Chinesa escrita por Samiel; os
doces e pastéis feitos pelas mãos experientes da Senhora Uarasaki; a música tocada
pela flauta de Hayabusa; os pregões estrangeiros e em Bellante Padrão da Praça
das Sedas no centro da Cidade dos Deuses; a própria vida campestre dos
principados dos feiticeiros e sacerdotes…
Tudo isso encantava-a muito
mais do que as fúteis brincadeiras das suas primas e damas de companhia.
Entretanto, veio uma experiente
açafata, que ao carregar um tapete para que a jovem princesa não ficasse com as
vestes sujas, lançou um olhar maternal em direcção à jovem princesa Grega.
- Minha senhora… - Inclinou
respeitosamente a cabeça, ao estender o tapete na relva fresca. – Hoje vejo-a tão
pensativa e melancólica…Podeis contar-me qual é a razão de tanto cismo?
- Provavelmente não é nada
de vulto. Mas ultimamente tenho tido uns sonhos de uma natureza verdadeiramente
perversa. – Confessou a Princesa Eris na sua voz doce, mergulhada num creme
inocente e apaixonado de mocidade.
A açafata quase que deixava
cair as tranças com umas madeixas prateadas, amarradas num carrapito típico de
uma mulher casada.
- Mas que pensamentos
imundos serão esses, senhora minha? – Perguntou num tom de horror.
As faces da sobrinha do
Imperador coraram como uma framboesa, muito envergonhada. Não fazia a mínima
ideia de como haveria de responder a uma pergunta tão intima. Mas, por outro
lado, aquela era a dama que sempre estivera com ela desde que Eris tivera chegado
da Grécia há nove anos.
Soltou um longo suspiro,
enquanto se contentava a contemplar a simplicidade aromática do chorão, uma
árvore milenar, mas sempre triste e sem uma única flor para oferecer aos olhos
de um ser humano, deus, demónio, fada, ou feiticeiro. Era como se a brisa
acariciasse as folhas humildes, mas belas da antiga árvore. Fascinada pelo
perfume magnífico que vinha das macieiras, ela pensou se não seria melhor
contar a verdade.
Era difícil ficar séria
quando queria era ser adulta e ao mesmo tempo uma pequena criança, ao inspirar
os sabores das flores do final da Primavera, enquanto estava nos braços do
bruxo.
- Bom, há um homem cujo amor
e desejos são maiores do que qualquer feitiço ou bênção que as deusas da
virgindade me pudessem oferecer. Sonho com esse fogo desde que ele…desde que
ele pousou os lábios nos meus. – Disse a princesa, enquanto se refastelava. –
Os poemas dele e a sua voz de mel cativam-me sempre que vou à pastelaria dos
seus lábios… Sempre que penso nele é como se a Primavera se prolongasse!
- Deixai, por amor do seu
tio e da sua tia, o Imperador e a Imperatriz que tanto vos estimam, esse amor
impossível! – Exclamou a açafata, completamente chocada com as palavras da
princesa.
Embora Eris fingisse que
compreendera o que a experiente açafata lhe dissera, durante o resto do dia, a
princesa fingiu que não tinha ouvido conselho algum. Respondeu discretamente a
um dos muitos poemas de Samiel com as seguintes palavras escritas no dialecto
Bellante do Norte:
Sob a sombra do chorão,
O amanhecer chegou aos meus olhos,
Com a beleza vi que a sua voz dourada,
É mais preciosa do que o coração
Oferecido em sacrifício no festival de Nagendra,
Sob a sombra do chão, colhi os molhos
Do maduro e húmido milho,
Ai, pobre e simples amigo
Será que haverá pior castigo,
Do que apreciar o desabrochar
Destas efémeras flores sem ti?
Como sempre, mandou um pombo
entregar a mensagem a uma das ruelas que davam para os bairros onde era a
vivenda e pastelaria dos Di Euncätzio. A seguir, esperou pacientemente por uma
resposta. Esperou durante horas ao pé da entrada de Suryadevnahutbal, subtilmente,
por um mensageiro. Aonde é que estaria o delicado e cinzento pombo que entregava
as cartas do Mestre Samiel?
Quando estava prestes a
retirar-se para o salão onde todos os membros da família Imperial apreciavam um
maravilhoso repasto, ela reparou numa ave com as asas a resplandecer no luar
como ouro. À primeira vista, pensava que era o pombo do pasteleiro.
Como estava enganada: era o
falcão do tal Encantador das Montanhas, com os olhos brilhantes e negros como o
almíscar. Ao aterrar nas grades, o
falcão apontou com o bico afiado para um pequeno pergaminho. Atado com uma fita
de seda vermelha, estava um frasco de perfume com uma rolha.
Eris, assustada com o
tamanho da ave com asas com penas de ouro, recuou nervosamente. Com a outra
garra, o falcão trazia o coração pequenino do pombo. Embora a princesa já tinha
visto muitos sacrifícios humanos, ela considerava a matança dos animais algo
demasiado bárbaro para ser visto pelos seus olhos femininos.
Teve um calafrio, ao ver que
o falcão acarinhava com a cabeça as faces dela, como se dissesse para não ter
medo dele. Encostou-se à manta dela, para não a magoar nos ombros.
A seguir, entregou-lhe com a
garra agora livre a mensagem.
Ela agradeceu a gentileza do
bicho, enquanto se afastava para ler nos seus aposentos com mais privacidade.
Talvez fosse da família Di Euncätzio, talvez fosse um pedido de desculpas pela
rude demonstração de afecto com que o filho da terceira esposa do Pasteleiro Di
Euncätzio declarara o seu amor.
Porém, ao se encontrar a sós
no quarto, descobriu algo mais escandaloso: os caracteres que estavam escritos
no pergaminho eram em Japonês, e Eris, apesar de saber falar fluentemente
Chinês, jamais tocara no assunto de aprender uma língua falada por pescadores,
camponeses do norte e por feirantes!
Tapou a boca, um pouco
repugnada e indignada pelo facto de um Encantador das Montanhas ser tão
ignorante.
Com medo de que se
espalhasse o rumor de que se estaria a encontrar com um homem rude e
absolutamente deplorável, a princesa queimou a carta com a ajuda de algumas
aias de companhia – aquelas em quem ela mais confiava.
Para quem está curioso o que
estava escrito na carta, esta simplesmente dizia:
Perdoai um homem que nunca soube escrever poesia, muito
menos pode comparar-se ao meio-irmão. Só sei de uma coisa: um dia, sereis a
minha esposa, Princesa!
Uma das aias tapou o nariz
enquanto acendia a lareira.
- Que horror, esta carta
cheira a sangue e a sopa de bacalhau! Que raio de homem é que tentaria
conquistar Sua Alteza com este cheiro horrível?!
Sem comentários:
Enviar um comentário