segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A língua tramada e uma conversa de raparigas

Continuação de "Especial Dezembro" ...Uma vez mais, a vida real inspirou-me a fazer qualquer coisa em Primeira-pessoa.


- Estava tanta gente no último exame de Bellante do Sexto Grau, acredita em mim! - Uma voz mais nova do que eu acordou-me. Eu cá tinha a cabeça inclinada para o outro lado da janela do autocarro.
Eu acreditava nela...O Bellante é uma língua tramada, principalmente para uma rapariga como eu que teve de estudar durante o Verão inteiro para conseguir perceber os diferentes dialectos que existem na ilha principal, como é que se escrevem os caracteres, quais são os sistemas em que se usa em cada um deles, e quais são os equivalentes em cada caso sintáctico. Estava exausta depois de no dia passado ter dado uma queca com o Pedro. A maior parte das miúdas e rapazes da minha idade já sabem fazer poemas ou ler o Bellante Arcaico do Norte, que é uma coisa muito esquisita e muito parecida com o Japonês e eu que me dá em doida sempre que os professores me perguntam qual é a conjugação formal do verbo "ver" ou "receber", ou "ser", ou lá o que o valha.
Mas enfim, que é que pensas que eu sou? Uma coscuvilheira que anda a ouvir a conversa dos outros? Só estava a tentar ver se conseguía perceber o dialecto dela, que devia ser da Cidade dos Deuses.
Bocejei. Sentía o aroma rico e formal a pão-quente com canela doce que emanava das palavras refinadas dela.
A segunda jovem de cabelos acastanhados e encaracolados (tal e qual os caracóis que por vezes aparecem na mousse de chocolate às terças-feiras no jantar) falava com um sotaque arranhado da Floresta de Cristal, mais informal, um pouco apressado nas sílabas, como se estivesse impaciente. Por mim, diria que elas tinham dezasseis a quinze anos. São mais maduras que eu, disso tenho a certeza. Pensei para com os meus botões.
A acompanhá-las, havía outra miúda, esta mais velha que eu um ano, de cabelo escuro e curto, olhos amendoados. É do Norte, e apercebi-me imediatamente disso quando cumprimentou as amigas no sotaque informal da Cidade Perdida, mais familiar para mim do que um lanche de arroz de camarão com algas doces a decorar o arroz que levava comigo.
- Vocês acham que vamos chegar a tempo? - Perguntou ela, enquanto ajeitava a carteira preta aos quadrados.
- Só se o Sr. Director não reparar que estamos lá. - Respondeu a rapariga com sotaque da Cidade dos Deuses. Tinha sardas na cara pálida e um cabelo alaranjado, com olhos claros.

Todas nós estávamos a caminho da Escola de Dois Dedos Perto da Lâmina
de Obsidiana (um nome muito apalavrado para o equivalente a uma secundária para pessoas da burguesia como jovens humanas e bruxas de famílias menos prestigiadas). Por que é que eu ia com elas? Bom, acontece que a minha Escola secundária na Cidade dos Deuses não tinha espaço suficiente para fazer o exame a mais de duzentas raparigas, que é exactamente o número total das miúdas (incluindo eu) da minha turma. É um bocado estranho, mas a minha turma só tem dez rapazes. Talvez porque eu tive que ir para uma turma de burras e de pessoas que ainda andam muito atrasadas na matéria em relação ao mundo Bellante e às línguas e à Magia. A maior parte dos rapazes da minha idade estão quase para ir para uma faculdade de magia. E como o meu pai nunca quis saber da minha educação como uma jovem Bellante, lá tive eu de me instalar com jovens humanas e com fadas e com bruxas de famílias menores. Na verdade, é muito melhor do que estar à beira daqueles gigantones dos Bruxos da minha idade. Eu, que sou um pouco alta, sou levada ao palmo por aqueles rufias de Cyborg Town e de Losjafhden! Se fosse levada para uma turma digna da minha classe e do nome da minha família, tinha de aturar uns quantos setenta magricelas de pele ressequida pelo gelo do Norte e borbulhados a olharem para mim como se eu fosse um gelado numa seca!
O mais engraçado de tudo isto é que eu não conhecia aquelas raparigas de lado nenhum, e no entanto, simpatizava com elas.
- Ele estava uma fera, o Sr. Director de Turma! - A mais nova da Cidade dos Deuses conteve um risinho embaraçado.
- Só espero que tenha tomado um café, ainda nem são oito da manhã! - Comentou a de cabelos encaracolados da Floresta de Cristal.

Deve ser difícil para os feiticeiros mais conservadores - e já agora, mais velhos - terem alunas como nós. Sabes como é, nós somos todas de uma geração que está a milhas da deles! Já para não falar de uma aluna como eu, que está sempre a falar nas aulas. Somos completamente diferentes das raparigas dos Anos 20 ou dos Anos 30 do século passado. Mas isto é mesmo assim...acho que é por isso que são homens a ensinar raparigas e mulheres a ensinar rapazes. Eu também tenho professoras, e o mesmo acontece com os meus colegas da Cidade Perdida, de Cyborg Town e de Losjafhden. É muito mais justo, não achas...? Só depois dos Anos 70 é que começaram a haver aulas com turmas mistas.

Porém há uma coisa que nunca muda: a maior parte dos directores de Turma são bruxos muito velhos, muito resmungões, e muito exigentes. Felizmente que já não existem castigos corporais! Havia professoras do sul que picavam uma jovem desobediente com um espinho de agave - uma planta que, na Ilha principal da Bellanária, só existe na Vila Enublada - na mão. A Sara diz que doía que se fartava e que ao cabo de cinco minutos, a fada que a tinha castigado já lhe tinha retirado o espinho. Não queiras saber quais eram os castigos que os Bruxos do Norte aplicavam aos jovens aprendizes e demónios, porque era muito pior. Aliás, acho que nessa altura - há mais de setenta anos - os homens nunca ensinavam as raparigas. Os Humanos eram sempre ensinados pelos pais, e só aos dezoito anos é que podiam alistar-se no Exército Bellante.

As coisas mudaram muito pela Bellanária, e eu estou tão contente que não nasci na mesma altura que a Sara!

Ora bem, aonde é que eu ia? Ah, sim. Então, as raparigas tinham entrado na Estação Manuelina, que é uma das estações principais de comboios na Cidade dos Deuses, que tem inúmeras paragens de autocarro.
Via-se logo que a ideia de terem um exame com o Director de Turma não lhes agradava nada. A dos cabelos alaranjados acendeu um cigarro, enquanto comentava:
- Isto é muito injusto! Termos que aguentar aquele sapo do Alho do Palácio das Reuniões num exame da Língua Bellante...
A rapariga do Norte esboçou um leve sorriso.
- Pelo menos não temos que aturar os rapazes do 1º ano da Faculdade de Magia Universal de Cyborg Town. - Disse ela, ao pentear o cabelo.
Foi aí que eu decidi meter o bedelho e lançei um olhar espantado para as três:
- Vocês conhecem o Alho? - Exclamei, admirada.
- É claro, ele foi o meu professor de Língua Bellante no 1º Grau. - Respondeu a rapariga de cabelos alaranjados com sotaque da Cidade dos Deuses.
- E também foi o meu! - Acrescentou a fada da Floresta de Cristal. Tremeu com um ar de quem não gostava de pronunciar a alcunha do homem com o sufixo honorífico Bellante - Ele é sinistro, não é?
Acenei com a cabeça, ao aproveitar o semáforo vermelho para abrir a caixa onde estava o meu lanche.
- Sinistro é a favor!
Então, a rapariga da Cidade Perdida reparou na minha marca de família. Ficou parva, enquanto olhava para mim de esguelha, um pouco desconfiada.
- Eh lá, tu és a Jessica Von Tifon! O que é que estás aqui a fazer?
Pousei os pauzinhos com que ia comer o arroz e franzi o sobrolho, aborrecida.
- O mesmo que vocês: a ir para o exame de Língua Bellante do 6º Grau, que é que acham? - Perguntei, com um ar nada surpreso. Não é raro as pessoas reconhecerem-me como a neta do Duque Von Tifon, mas até parece que eu sou uma das noivas do Conde Drácula ou coisa parecida. É muito chato ser-se famosa. Quer dizer, só porque eu tenho aparelho nos dentes, os olhos azuis, esta altura descomunal e um ar de má isso classifica-me como uma Von Tifon, é isso?
Suspirei quando elas ficaram com um ar envergonhado, como que a dizer: "Pois claro, somos mesmo estúpidas..."
- Não faz mal, também posso ser vossa amiga. - Disse eu, ao esboçar um pequeno sorriso, enquanto que dedilhava nos meus caracóis cor de sangue. - Então, quais são os vossos nomes?
- Eu chamo-me Júlia Nestorovna Kaminskaya, sou humana. - Disse a de sardas com cabelos alaranjados e lisos.
- Eu sou a Oshiro Riko, filha de bruxos de patente baixa. - A mais velha da Cidade Perdida sorriu ao inclinar a cabeça.
- O meu nome é Sophia Xocolatlicue. - Timidamente, a fada acenou com uma das mãos, mas de cabeça erguida. - Sou uma dríade.
Vou-te explicar por que razão nós na Bellanária quando nos apresentamos a alguém, temos de dizer que classe é que somos: é uma questão muito antiga, pela qual a língua Bellante se rege em graus de formalidade.
Assim, eu podia saber como é que trataria as três. De qualquer maneira, eu não ligo muito a isso. A língua Bellante é mesmo tramada! Mas ao menos encontrei raparigas da minha idade - ou que pelo menos, compreendem-me. Começámos por falar sobre como eu era uma nódoa a Bellante, e elas disseram que não era assim tão difícil. Ao chegar à Escola Dois Dedos Perto da Lâmina de Obsidiana, não estava mais sozinha. Tinha três amigas muito simpáticas!

Sem comentários: