segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um conto de dia de S. Valentim...

Uma jovem rapariga, a passear sobre o antigo bairro de Losjafhden. Era só isso que ela era, uma pequena dos seus dezasseis anos, de cabelos negros e a cair numa tímida, humilde trança. Losjafhden, a parte mais assombrada de Cyborg Town, tinha caído em desgraça, há mais de cem anos atrás.



Não havia mais ninguém a viver ali...a não ser os fantasmas, é claro. Ela conseguia inalar o pequeno perfume a cinzas e a enxofre. Com os cabelos de seda, com sabor doce a jasmim e a farinha de tortilha, a jovem camponesa continuou a caminhar até às margens do fresco, rápido e tormentuoso Rio Bênção.



Os pais tinham-lhe avisado um monte de vezes: não vás para Losjafhden, é uma zona maldita, povoada de monstros e males inomináveis!



No entanto, as raparigas da mesma idade que ela, que viviam perto da floresta de Cristal, no lado sul, elas tinham-lhe prometido que se conseguisse passar uma noite nas margens do Rio Bênção - e não ficar assustada - então elas seriam amigas dela. E ela gostaria tanto de ter amigas. Era uma jovem bonita, mas magrinha, com uma constitituição de uma banana saudável. Os seus pequenos olhos castanhos cor de avelã tentaram alcançar as flores de pessegueiro e de amendoeira, à medida que o Sol se aproximava do horizonte.



Arranjando a manta de lã de ovelha colorida com pequenas espirais aos quadrados para se deitar, ela nunca pensou que dia era aquele, qual era o significado por detrás do calendário de pedra que havia no templo dedicado às ninfas do rio, na aldeia onde ela vivia. Mas o que é que importava isso, se já tinha comido, e se agora, mais do que nunca, tinha de provar o seu valor diante das outras meninas.



Ela olhou para a direita, e depois para a esquerda, e, aninhando-se com um monte de folhas, coberta com o sari de linho quente e branco, adormeceu.



Entretanto, o vento começou a soprar cruelmente sobre as folhas. Com os olhos fechados, a jovem rapariga não sabia que era estritamente proíbido aos humanos passear nas margens do Rio Bênção, quanto mais numa altura como aquela, precisamente naquela época do ano, em que a terra, despida da neve, fica mais escorregadia e é mais fácil cair às águas gélidas e profundas do rio sagrado... Muitas coisas se dizem sobre esta altura do ano, nas margens do lado de Losjafhden, em que nem a protecção da deusa Swertyhina pode salvar qualquer incauto das garras dos guardas do Rio.



Estes, ao contrário dos cisnes brancos do Verão, são máquinas sagradas, estes são aqueles que são venerados como os lacaios do grande esposo de Swertyhina. E já o eram naquela altura.



Pois então, aconteceu que à meia-noite, quando a Lua se escondia perante as nuvens escuras trazidas pelo vento do Norte, um homem de olhos azuis turquesa apareceu diante da jovem.



A sua pele branca, quase cinzenta, era suave e delicada. Envergando um manto de pele magnífico que lhe realçava as curvas, os músculos bélicos e as cicatrizes ásperas de batalha, o jovem tinha um rosto longo e angular. O seu cabelo negro e comprido resplandecia sobre o brilho das estrelas, preso por um fio com um dente de marfim canino.



Nos pés, ele usava umas botas de cabedal cinzentas, pequenas. E contudo, a sua altura descomunal de seis metros fazia-o ainda mais impressionante. Os seus lábios pronunciaram, numa voz grave, quase rouca, o nome da rapariga:



- Milyiamazatzl...acorda Filha do Veado! - Ele tratou-a não pelo nome, mas sim pelas pernas dela, que se conseguiam ver como as pernas de uma corça. Chamavam-se assim todas as raparigas camponesas, por terem tecidos e vestidos onde as pernas se conseguiam ver e eram mais magras que as mulheres nobres. Filha, mais nova, pequenina, eram não só nomes carinhosos que um pai Bellante trataria a filha, mas também os únicos nomes disponíveis para as raparigas que eram filhas de camponeses. - Estás nos meus domínios.



As pálpebras suaves ao toque abriram-se de repente, e, as narinas dela apanharam um leve cheiro a água doce e a algas molhadas. Realmente, o cabelo deste homem esquisito era mesmo parecido a algas. Não usava nenhum chapéu na cabeça, embora a sua lança fosse o suficiente para convencer qualquer um de que ele era um guerreiro.

Assustada com a aparência intimidante do jovem feiticeiro, ela recuou, com as pernas ainda no chão, fazendo-lhe reverência.

- Oh, peço-lhe imensas desculpas, mestre! - Os cabelos longos dela roçaram na erva húmida, à medida que se ajoelhava diante do aprendiz de feiticeiro. Uma rapariga humana jamais deveria olhar nos olhos de um feiticeiro. E no entanto, aquelas duas opalas azuis eram tão bonitas que ela não deixou de denotar um tom de espanto na sua vozinha. - Fazei o que quiser comigo, cedi à tentação de desafiar o poder dos Deuses e mereço um castigo. Mas por favor, não deixai que a minha mãe fique sem a sua primeira filha, que tanto a ama e é a única felicidade que aquela que me deu à luz tem nesta vida.

Ela estava muito preocupada com o que lhe poderia acontecer. A pequenina de olhos de avelã sabia muito bem o que acontecia às jovens humanas que não respeitavam a vontade dos Deuses. Entrar na propriedade de um bruxo sem a sua autorização significava para uma mulher humana a morte por chicotada.

Chorou silenciosamente contra a terra durante uns minutos, arrependendo-se de ser tão teimosa. O orgulho nunca é bom conselheiro.

Porém, o estranho feiticeiro ergueu uma mão em direcção a ela, como que a fazer sinal para que ela se sentasse de joelhos. Apercebendo-se desta atitude, ela fez de imediato aquilo que ele pedia. Ainda de cabeça baixa, ela escutou a voz grave do homem:

- Eu vou poupar-te a vida, pois és uma donzela muito nova e formosa. - Quando ela olhou de relance, a jovem conseguiu notar um sorriso nas faces longas dele. - Porém, não penses que te escapas de mim. Irás voltar, sim, à tua família, mas não antes de passares a noite comigo, no meu palácio senhorial. Fica aqui perto da Nossa Mãe Swertyhina e é uma das mais raras e preciosas moradias.

- Mas...Eu... - A camponesa quase gaguejou, sem saber o que fazer ou dizer. Ainda soluçava, nervosa com a ideia de ser prisioneira daquele homem por uma noite.

- Nada de queixas! - O feiticeiro rosnou num tom de quem não parecia estar para ouvir nem uma explicação da pobre rapariga.

E ela não teve outro remédio senão segui-lo, ainda de joelhos, sem sequer olhar para os olhos dele. Não sabia muito bem o que é que ele queria com ela...e como poderia saber, sendo ela tão nova e tão ingénua, demasiado para conhecer os mistérios dos prazeres da carne? Apertando a saia contra as pernas, ela estremeceu de frio, quando reparou que ele a encaminhava até ao lugar onde as águas eram mais profundas, o Silvikakltzam - abismo das silvas marinhas.

Nessa parte mais a norte do rio, poucos peixes se atreviam a subir à superfície, mesmo assim, havia alguns salmões a subir as inclinadas águas do rio. Havia um redemoinho guardado por portas de mármore verde-escuro, pintados com cores quentes e vermelhas. As montanhas dos Alpes das Sereias já se conseguiam ver perfeitamente, iluminadas pelos fantasmagóricos fogos-fátuos dos pântanos onde milhares de mortos jaziam.

- Bem vinda às portas do meu palácio, filha de humanos. - O feiticeiro despiu-se tão depressa que nem deu tempo para ela ver o que é que se estava a passar. Numa questão de segundos, o homem tinha-se transformado num enorme tubarão de água doce com um colar de jade perto das guelras, uma placa em ouro perto das barbatanas dizia o seu nome. - Eu sou um demónio feiticeiro, um tubarão com mais de cinquenta e dois anos. Segundo a Lei dos bruxos, toda aquela jovem que pisar o território de um feiticeiro da Magia Negra sem a sua permissão, será chicoteada até à morte. Porém, eu sou um demónio e não partilho a mesma lei dos bruxos humanos, embora me possa disfarçar de um. Vem comigo, minha querida, e nada receies, que o mundo lá em baixo não é assim tão assustador como pensas.

A jovem camponesa recuou, já de pé. O tubarão, já a nadar sobre as fortes águas do rio, parecia não ter dificuldades em nadar. Mas então e ela? Ela nunca tinha nadado nas águas do Rio Bênção. Debruçada sobre as altas muralhas que separavam a terra da água, ela pensou se estaria a sonhar, ou se aquilo era uma outra forma de os Deuses a castigarem. Esfregando os olhos, ela, com medo de se afogar, abanou a cabeça em sinal que não.

- Ò senhor espírito das águas, como é que eu tenho a certeza que não me afogo nas águas sagradas? Ou pior, se fico sem ar para respirar... - De pé e separada dele, era fácil para ela dizer essas mesmas palavras.

- Confia em mim, pequena criança humana. Assim que entrares com a cabeça na água, é fácil para mim ajudar-te a desafiar a Lei dos Homens. - Ele parecia menos assustador na sua verdadeira forma, embora ela continuasse a ter medo daqueles dentes grandes e afiados que sorriam para ela, no meio da escuridão.

Respirando bem fundo, ela pensou que seria muito pior se ela tentasse fugir dele. Não era nada aconselhável fugir à vontade de um demónio. Um demónio é uma representação das forças da Natureza. E ela não queria desafiar a Mãe Bilafassabnsair.

Ao entrar na água, ela reparou que duas mãos invisíveis empurraram-na para o corpo macio e polido, castanho-escuro do tubarão feiticeiro.

- Assim está melhor. - Pareceu a Milyiamazatl ouvir um ronronar a sair daquela boca cheia de dentes. - Agarra-te a mim, e não me largues, há outros demónios menos piedosos que eu!

E ele tinha razão, havia outros demónios muito mais perigosos no leito do rio, mesmo no fundo da grande cascata que desembocava num redemoinho e depois nos rápidos que davam origem ao rio, mais calmo, perto de Cyborg Town.

Como a raça humana estava tão longe agora...! Silvikaltzam - assim era chamado o redemoinho - era uma porta para um mundo onde habitavam as maldosas naíades (a espécie mais perigosa das fadas marinhas), os Nagas - os dragões metade homens com poderes mágicos - e os tubarões demónios, os tubarões que após atingirem os cinquenta e dois anos, adquiriam certos poderes e ficavam até mais inteligentes que os seres humanos.

Estas mesmas três tribos de demónios dizia-se serem as responsáveis pelo maior número de mortes a humanos.

«Porque razão ele chama a isto de moradia?» Ao deixar-se levar pelas barbatanas fortes e quase ásperas do sábio animal, ela reparou numa grande gruta, decorada com opalas, safiras, jade, quartzo, turquesas, e pérolas. Ela não conseguia ler muito bem a inscrição gravada na placa que indicava a entrada. O mais estranho daquilo é que ela conseguia respirar debaixo de água. As águas não eram de todo turvas, por que assim ela conseguia observar os vários peixes que viviam perto dali.

Ao maravilhar-se com os peixes demoníacos das profundezas, com as suas luzes minúsculas, e com as suas lanternas - como que se fossem feitas de magia - ela quase que largava as barbatanas do tubarão.

- Não me largues, pequenina! - Disse ele, desta vez numa voz mais preocupada. - Se outros tubarões souberem o que estou a fazer, iriam comer-te viva!

A pequena rapariga camponesa suspirou, com um pouco de medo. Ao chegarem à gruta, ele, como por um acto de magia, fez com que um manto de areia suave e branca cobrisse todo o chão polido de mármore, iluminado por fontes de lava quentes.

- Cuidado, pequenina, aqui, tudo é venenoso, excepto eu. - Ele, já no seu disfarce humano, mas com guelras, ajudou-a a sentar-se na cama.

Enquanto se punha comfortável, ela reparou como aquele mundo era baseado nas luzes das fontes vulcânicas, e como os peixes reverenciavam o demónio, mais velho e mais sabido da vida que eles. Ali, não havia estrelas ou Lua. Mal ela sabia que estava a mais de seiscentos metros abaixo da superfície! Estava tão escuro, que mal ela se deitou junto a ele, ela sentiu o calafrio amargo da boca dele junto aos lábios dela.

- És o meu tesouro, pequena humana! - Exclamou ele, enquanto carinhosamente acariciava-a com as mãos anormalmente quentes.

Muito vermelha nas faces com aquela atitude, ela não sabia o que havia de fazer. Mas ao olhar para aqueles olhos azuis profundos, brilhantes, ela não resistiu à tentação, e deixou-se levar pelo calor do momento....

Depois daquela noite, ninguém em todo o Norte da região do Rio Bênção sabe o que é que aconteceu àquela camponesa...mas esta história, foi um peixe que ma contou. Esperemos que na próxima semana, eu possa saber...Ou talvez não.

Talvez o peixe já tenha sido devorado por um demónio das águas frias. É Fevereiro, e nesta altura do ano, é preciso ter-se muito cuidado. Nunca se sabe o que pode acontecer. Os tubarões de água doce bellantes gostam muito do Inverno. Águas gélidas, mortais, que escondem mil e um perigos.

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