sexta-feira, 7 de março de 2008

O Encontro (2ª Parte)


Samiel, indiferente àquela dor toda, puxou elegantemente duma cadeira, e, com um sorriso irónico, encheu a sua própria taça doutra bebida.
Ambos sabiam como era de importância capital que encontrassem a Princesa Eleonora o mais depressa possível.
E Samiel também sabia que a quarta filha de Neptuno tinha desaparecido, na verdade, era isso mesmo que em que ele estava a trabalhar.
Encostou-se, confortável na cadeira, e, enfrentou os dois rapazes com um semblante geralmente curioso.
- Não se façam de comedidos. Sentem-se, por favor. – Disse com um ar convidativo e sinceramente hospitaleiro. – A que devo a honra de acolher dois talentosos guerreiros como Vossas Senhorias?
Anúbis foi o primeiro a recostar-se passo a passo na sua cadeira e bebeu precipitadamente dum só gole a aguardente, que lhe fez arder a garganta duma forma quase fatal.
Não estava habituado a bebidas tão fortes como aquela, a única coisa que bebia no Egipto era vinho branco.
- Se me permites, Assassino do Amor, nós precisamos de ti para um tipo de....demanda. – Disse ele roucamente.
O feiticeiro negro fingiu estar surpreendido, com um brilho de mesquinhice nos olhos.
Com as garras pousadas nos braços da cadeira, ele tamborilou desinteressadamente com os dedos no veludo cor-de-vinho da cadeira.
- Ah sim? – Murmurou com um tom escarninho. Depois, mudou para uma voz normal – Bom, eu adoro desafios, além do mais que eu ainda não fiz a minha boa acção do mês, não concordam?
Um silêncio de cortar à faca percorreu o salão rectangular com um tecto arqueado e alto, de forma a que a única coisa que conseguissem ouvir eram os miados inactivos do Tigre da Escuridão, que, ocasionalmente, bocejava, e, podia-se ver as grandes presas daquele formidável animal. O Tigre da Escuridão tinha, aproximadamente, dois metros e trinta de comprimento, e, com as suas riscas pretas e brancas, ele era, talvez, o único amigo de Samiel
A seguir, com um ciciar arrepiante, chamou o elegante felino para o pé dele.
Com uma mão a segurar no Frambinam e a outra a dar festas ao tigre, ele acrescentou num tom arrogante e suave, com os olhos verdes a brilhar funestamente:
- Eu sei do que é que estão à procura. De qualquer maneira, o demónio que levou a nossa adorável Princesinha é demasiado estúpido para a matar.
Indra não dizia nem uma palavra, estava demasiado assustado para falar fosse o que fosse. A princípio, quando entrou naquela sala, ainda queria dizer umas quantas verdades ao Assassino do Amor, mas, quando viu os olhos ferozes do animal ao pé de Samiel, decidiu não pronunciar uma única palavra. Era lógico que, aos olhos do jovem deus, aquele bruxo fosse um demónio por si só, mas um demónio terrível. Para o príncipe hindu, Samiel assemelhava-se a Ravana, o falso, maléfico e imortal Rei dos Demónios naqueles tempos antigos.
Por isso é que tinha tanto medo do mulherengo feiticeiro, cuja personalidade era tão parecida com a do demónio hindu.
De súbito, a pergunta que tanto o atormentava veio, naturalmente, como se já a tivesse ensaiado:
- Senhor, perdoai-me a impertinência, mas...Sois um demónio? Para conhecer tanto acerca deles e ter tantas mulheres à sua...
Mesmo antes que Indra terminasse a questão, o bruxo soltou uma gargalhada aterrorizadora.
- Não! De forma alguma! – Disse ele, rindo-se. – Na verdade, conheço alguns demónios, mas nunca em toda a minha vida, convertia-me num membro daquele povo horroroso! Os Demónios são criaturas loucas e extremamente perigosas, já tive alguns problemas em lidar com eles. Perturbadores e travessos, são ainda piores que as Fadas. Não é que eu não esteja seguro no rasto de Ravana, mas, uma vez que somos, ambos, de forças e carácter iguais, não nos damos ao trabalho de combatermos um contra o outro. Odiamo-nos mutuamente, contudo, não somos, propriamente, inimigos mortais.
- Não achas que essa é uma atitude bastante cobarde da tua parte? – Instigou Anúbis chateado. – Mas é claro, culpar os demónios pelos teus crimes é uma saída relativamente fácil. Afinal, sempre foi assim que te safavas de todas as tuas trapaças e mentiras: incriminavas os outros pelas coisas que tu tinhas feito. Sempre foi assim, não achas?
O feiticeiro tirou do manto uma boquilha prateada, com lindos desenhos célticos de magia negra e, acendeu um rolo de papel com um pouco do hálito ardente do seu animal de estimação, e pôs a cigarrilha na boca, fumando com requinte.
Recostado na cadeira, soprou pacientemente anéis de fumo, e, na imensidão daquele silêncio podia-se ouvir a sua voz quase átona, muito aguda e metálica a fazer pequenos assobios, tais como sibilares duma cobra. A sua voz, fria e invulgar, faria com que qualquer um congelasse de medo. Contudo, durante alguns minutos, fez uma curta pausa para apreciar o sabor do tabaco na língua invulgarmente bifurcada.

Anúbis estava um pouco apavorado a admirar o sítio onde o Assassino do Amor vivia. Contemplou plenamente o espaço, e suspirou, com ainda o sabor do álcool e de framboesa na garganta: lembrava-lhe os beijos arrebatadores de Racel. “Linda e perfeita Raquel”, como lhe chamava Anúbis.
Como ele desejava que a segunda princesa mais velha de Neptuno estivesse com ele. Anúbis e Raquel eram grandes amigos, desde crianças, e o jovem infante Deus sempre mostrara uma atracção por ela. Tinha um grande receio que Samiel a roubasse dos seus braços, mas o velho bruxo não queria nada com fadas experientes. Então, o egípcio limitou-se a olhar para o lugar onde estavam. Primeiro fixou o seu olhar em Samiel, que agora, alheado do mundo de todos, chupava de forma silenciosa o pó azul-escuro para depois o soprar elegantemente, formando através do fogo que estava pendurado no meio do cigarro um fumo quase irrespirável. Talvez fosse o efeito da droga que o bruxo fumava, talvez fossem os próprios medos de Anúbis, mas o jovem deus sentia um grande vazio na sua mente, como se alguém lhe tivesse arrancado todos os sentimentos doces e bons da vida, incluindo Raquel.
O espaçoso laboratório onde Samiel trabalhava, construído sob um estilo predominantemente gótico e modernamente manuelino tinha janelas grandes de pedra onde tinham sido decorados com cortinas vermelhas a condizer com as formas bicudas das janelas do tamanho de mísseis, era sustentada por arcos em ogiva, sob os quais os anéis de fumo da cigarrilha se elevavam até a uma altura espantosa. Aí, desapareciam como meras miragens no meio dum deserto escuro. . Nessas ilusões azuis-escuras e profundas, o rapaz ficou de boca-aberta quando jurou ver Raquel ou uma rapariga muito parecida com ela a dançar sensualmente uma coreografia provocante para um bruxo divertido. Seria o Assassino do Amor tão insaciável de carne feminina?...

As formas pequenas e esguias do fumo misturavam-se na cabeça de Anúbis como um gás tóxico!...

2 comentários:

Anónimo disse...

Inebriante. A descrição final foi muito bem colocada. Cheguei a imaginar que uma armadilha se abria para o pobre homem...

Anónimo disse...

OI!