Fosse lá ilusão ou não, o quarto enorme onde a Imperatriz acordou
não era daquele que pudemos imaginar em sonhos: era melhor…! A câmara onde
estava era ampla e com cerca de vinte metros quadrados de área, um palco de
madeira de andiroba, onde a distinção e elegância combinavam em várias
carpetes, cobrindo o chão gelado. Uma brancura e organização dominavam toda
aquela sala, iluminando-a com raios de sol potentes, afastando as cortinas
verde-escuras de veludo, bordadas com flores de gerânio e passarinhos colibri
de ouro. A sala rectangular, com os tectos pintados em frescos de magnificência
renascentistas, ostentavam um bom-gosto espantoso, e, sem a menor sombra de
dúvida, uma repressão fascinante, um poder incapaz de ser controlado, uma
caverna repleta de maravilhas, antiguidades, riqueza que denotava uma perfeição
impossível.
A cama de talha dourada, com vários jaguares a proteger as alcovas
de cores quentes, e de pele, eram tão fofas como nuvens, podendo alguém
afundar-se completamente nelas, esquecendo tudo e todos, enquanto que as
colchas eram cor-de-rosa, marcando uma imagem claramente compreensível e que
sabia o que os outros queriam, embora não pudesse ser muito confortável, quando
Sarvahdinada recuperou por fim os sentidos, pensou que estava num sonho
criativo e artístico, muito clássico, mas imaginativo.
Sobre o tecto,
um candeeiro de lâmpada de ouro dava o toque final à sala branca, enchendo o ar
de um incenso perfumado em hortelã e gerânio, gerando um efeito soporífero em
qualquer que sentisse tal delicado e fino aroma. No canto inferior esquerdo,
havia uma porta para um quarto de banho, com torneiras de metal, com kinnaries
pintados a ouro, e com jóias de turquesa, tudo isto rodeado por azulejos
mesoamericana, demonstrando cenas de um paraíso azteca, onde a água e o
azul-claro proliferavam em harmonia com as árvores e animais descritos em tal
Éden selvagem.
No entanto,
rodeada de tanta riqueza, ela não podia deixar de se sentir assustada. Alguém a
tinha levado para aquele lugar, e, abrindo os olhos, espantada, num sitio onde
não devia estar, ela reparou que as suas roupas tinham mudado de sujos trapos,
para sedas brancas, um vestido de noite belo, e, que lhe assentava que nem uma
luva, agraciando a sua curvilínea figura.
Ela sentia que alguém a estava a vigiar, e então, viu que a sala
onde estava tinha como janelas cinco portas para a varanda, onde saia uma luz
espantosa, várias flores repousavam, verdes, encantando o cenário, cintilando,
a meio da manhã. Só então reparou que estava num palácio, cercado por uma selva
imensa, a perder de vista.
Quando dormia em pequena no Château do Duque Von Tifon, ela tinha o
quarto mais belo que se pudesse imaginar...mas não era nada comparada com este
quarto digno de uma princesa dos contos de Fadas Bellantes. Na Alemanha decerto
que não haveria uma vegetação tão variada. Se não tinha sido raptada nem pelos
Alemães, nem pelos homens da temível Kempeitai, então aonde estaria ela...?
Embora gostasse da qualidade e do tradicional, aquilo certamente
era demasiado tradicional, até mesmo para ela; móveis de mogno escuro, tirados
de um antiquário qualquer, uma biblioteca privada cheia de livros e livros
sobre a vida azteca, até existiam cópias raríssimas e modernas de códices de
civilizações mesoamericana!... Havia uma moldura de uma fotografia a preto e
branco assinado pela autêntica Mata Hari, datado de 1915, e até havia, ao pé
das janelas, um esboço verdadeiro encomendado pelo proprietário a Picasso das Demoiselles de Avingnon, coisa que
espantou muito a mulher, foi ter visto um pisa-papéis em metal do símbolo do
México, uma águia a segurar uma serpente, empoleirada num cacto, sobre uma das
prateleiras da pequena biblioteca de livros, todos eles em Inglês corrente ou
em Mexicano, ou mesmo em Bellante, sobre Shunrasen. Pousado entre outras
coisas, estava também um aquário em forma piramidal, como se fosse um templo
mesoamericano, com os seus cinquenta centímetros de altura e dois metros de
largura, e quatro peixinhos diferentes a nadarem, livremente, entre algas
tropicais e corais provenientes, talvez, segundo os cálculos de Sarvahdinada,
do Golfo do México.
Pondo os braços nas colchas da cama, ela respirou bem fundo o ar
fresco que vinha da selva. Se tudo indicava para um clima exótico e quente...Supôs
que aquele palácio só podia ser do seu salvador ou do seu raptor. O mistério
assombrava Sarvahdinada Di Neptunus, e quanto mais pensava nisso, mais
embriagada ficava com todo o esplendor daquele quarto. Quem é que poderia viver ali...?
Os cabelos reflectiam os raios de Sol numa cor dourada e
açucarada, estendidos ao comprido na cama. Ao passar com os dedos a longa
cabeleira, Sarvahdinada ficou boquiaberta! Estavam mais sedosos do que
nunca...! Um milhão de perguntas assaltavam a sua cabeça, mas, quanto mais
pensava nisso, mais confusa ficava.
Entretanto, suspirou, aborrecida, esperando que alguém lhe desse
respostas, para toda aquela confusão, sim, porque a solução para todo aquele
mistério não ia exactamente bater à porta, pois não? Ou seria que ia?... Bom, o
que importava é que ela estava sã e salva, e que, aonde quer que estivesse, já
deveria estar bem longe daquelas criaturas asquerosas e demoníacas…Pelo menos
por agora.
De repente, umas portas escuras de carvalho refinadas abriram-se
juntas, de par em par, e ela viu um homem moreno ricamente vestido numa túnica
negra, bordada com espirais de sangue quente. Usava uma gola felpuda de pele de
jaguar escuro que ornava a capa de couro, que caía desde os ombros até ao chão
de mármore escorregadio. No entanto, o rosto era incrivelmente masculino. Os
seus olhos verdes brilhavam num mórbido e estranho prazer. O cabelo negro tinha
sido rapado de forma militarística e moderna. O nariz cruel e afilado (tal como
qualquer guerreiro antigo da Bellanária) pressentiu o medo dela. O pior nem era
isso, ela conseguia escutá-lo, conseguia ouvir o barulho do pé artificial de
obsidiana a roçar contra o chão, como se fosse um coxo, porém aquele, aquele
era um homem muito poderoso.
- Muito bom-dia, Princesa Sarvahdinada...já lá vão quase dezoito
anos desde que a vi, na cerimónia do Segundo Baptismo. – Disse a voz fumosa e sedutora
do Senhor Tezcatlipoca num Bellante corrente e fluente. O barítono calmo
daquela voz causava-lhe arrepios. – Para os Humanos, dezoito anos é muito tempo,
mas, como muito bem sabeis, para mim isso é uma mera migalha nas centenas de
anos que estarão para vir.
Sarvahdinada, surpreendida com o facto de que o homem que a tinha
salvado das tempestades do Deserto da Sabedoria fora o deus que outrora exigia
mais sangue humano do que outro deus no panteão Bellante, não deixou de
inclinar respeitosamente a cabeça em direcção ao deus de dois metros de altura.
- Muito obrigada pela vossa misericórdia, meu Senhor! – Gaguejou
ela, o coração a pular, tanto da adrenalina de conhecer um verdadeiro deus em
plena consciência, como também da aflicção. O que quereria o Criador de Si
Próprio dela?
Enquanto um jovem servo pousava um sumo de maracujá e biscoitos de
manteiga numa bandeja de prata à beira da cama, ela sentiu a respiração do deus
perto dela. Sem que desse conta, ele já estava sentado na cama do lado dela.
Estalando com os dedos
anormalmente magros, quais patas de um jaguar faminto, ele olhou gentilmente
para a mulher, que agora lhe virava as costas.
- Oh, Princesa Sarvahdinada...O prazer foi todo meu, não vos podia
deixar assim, à mercê daqueles humanos selvagens. – Acenou neutralmente para a
comida. – Aceitei, por favor, filha do meu sangue, estas delícias.
- Aqueles Japoneses não são selvagens! Eles só estão a cumprir o
dever deles, que culpa têem do Imperador deles estar em guerra comigo? –
Respondeu Sarvahdinada num tom estranhamente corajoso perante um deus.