quarta-feira, 1 de junho de 2011

O Rouxinol Von Tifon

Não sei se já vos falei do meu bisavô Christoph William von Tifon. Então perguntei uma vez à minha mãe quem era o pai do Avô Adrian. A minha mãe - que prefere debater-se entre pepinos, tomates, raspadores de cenoura, cebola e pimentos - disse num tom muito insultado e indignado que nunca tinha conhecido (ou sequer ouvido falar) o "Avô" dela.

«E agora desampara-me a loja que o Reini não gosta nada se eu me atraso com o jantar!» Respondeu ela, com aqueles dois grandes olhos azuis, como se fosse uma juíza no meio de uma sala de tribunal a dizer que a sessão estava terminada.

Mas eu, eu não desisti até encontrar uma dúzia de livros poeirentos sobre o avô, colocados mesmo no fundo de uma prateleira, abandonada ao Deus-dará, no canto mais extremo da biblioteca, um canto que parecia nunca ter visto a luz do Sol. Vocês não gostam de ir ao sítio aonde a vossa família guarda todos os tesouros, aventuras, desventuras e podres? Eu adoro! Principalmente porque, uma hora depois, eu fico toda rouca da garganta. É no que dá ser neta de um velho saco de ossos alérgico ao ar puro.

Enfim, a máquina fotográfica ainda não tinha sido inventada na altura em que o bisavô viveu, e pelo pouco que sei sobre ele, o excelentíssimo Sr. Duque Christoph von Tifon raramente deixava que um escultor ou um pintor representasse as suas belas faces. É muito estúpido, porque eu acho que o meu bisavô não deve ter sido assim tão feio como o meu avô ou o meu Padrasto. Tinha um ar juvenil no nariz pequeno, em forma de cogumelo. Os olhos, claro, pareciam ser azuis, mas eu até apostava que eram verdes. Eram aquilo a que a minha Tia Charlotte diria: “uns topázios num lago salgado de algas”. Mas a Tia Charlotte é muito mais poeta que eu, e eu jamais arruinaria as frases dela com as minhas humildes e sujas palavras, acabadas de sair da fria Inglaterra.

O meu bisavô, naquela pintura, parecia sonhador, a olhar para uma toutinegra, com uma caneta antiga na mão, pensativo, mas com um leve sorriso no rosto angélico e nórdico. Era apesar de tudo, pequeno – aposto que não media mais que um metro e setenta – para a maior parte dos bruxos. Com uma constituição de monge pedinte, as túnicas púrpura elevavam-no ao estatuto de um poeta clássico. E quem sabe, se até ele era poeta? É que, segundo o meu bisavô nas suas cartas, quase coladas ao papel do álbum de fotografias de antigos retratos e recordações, a Mãe Natureza, os Deuses, tinham conspirado para que ele não fosse um bruxo, mas sim um artista.

E então, descobri que o meu bisavô era muito mais novo que a minha bisavó quando tinha casado com ela. No princípio do livro sobre ele, dizia que ele tinha nascido em 1750, quando a poderosa Senhora Murakami nascera em 1699. O casamento foi combinado à antiga, quando o pequeno Christoph só tinha dez anitos, em 1760. Quando ele atingiu a maioridade, em 1768, o casamento foi celebrado em Tóquio, com toda a pompa e circunstância, numa floresta conhecida da família demoníaca Murakami.

A seguir, noivo e noiva foram de navio até à Cidade Perdida. A Senhora Murakami tinha então sessenta e oito anos! Fiquei completamente parva. Imaginar uma senhora tão velha a casar com um rapazinho de dezoito anos fez-me rir. Penso que a minha bisavó nutria um sentimento quase maternal pelo marido.

E acho também que isso aconteceu com o meu padrasto e com a Sara. Mas a Sara…a Sara tinha dezassete anos quando o conheceu!

Mesmo assim, acho que deve ter sido uma união muito querida e carinhosa, a da minha bisavó e a do meu bisavô. Os poemas que o meu bisavô tinha escrito sobre ela eram lindos.

Se há um pensamento que me assombra,

É este de ser uma fria catacumba,

Um vaso simples sem ornamento,

Algo vazio, e no entanto um complemento,

À minha vida e ao meu mundo!

Mergulho, cada vez mais fundo,

Sondo as páginas do teu e do meu ser,

Mas, nunca poderei descrever,

Aquilo que há de mais profundo

No meu ardente querer!

Só tu, querida, com este teu fruto,

Maduro e preciosa maçã de Primavera

Faz com que eu fique mudo,

E faça com que a minha mente,

Se torne uma poderosa quimera!

O meu bisavô era o mais humano dos Von Tifon, mas casou com o lado mais demoníaco da família: a minha bisavó. É uma história linda a dos meus bisavós, não achas? Acho que ela só dizia que se tinha casado nova porque ficaria envergonhada. Ela dizia que se tinha casado aos dezasseis anos, mas acho que a minha bisavó tinha sofrido muito na vida para se apaixonar verdadeiramente por alguém. Ainda bem que apareceu um rapaz sensível e bondoso como o meu bisavô na vida dela. Ali estavam, as datas verdadeiras do nascimento de ambos. É impressionante que o meu avô tenha nascido da união destes dois. A minha bisavó não era malvada, ela só tinha passado por muitas coisas enquanto mulher japonesa. Ela só dizia aquela mentira piedosa de ter casado cedo por não queria que pensassem coisas ainda piores do que já pensavam.

E o meu bisavô – um amigo do peito do grande escritor Erwin Di Gracxiushandrian – que lhe dedicara todo o seu amor, adorava as crianças que ela lhe tinha dado. Quando penso que o meu bisavô é o avô da Sara, acho que faz um pouco de sentido que ele se tenha casado com a Senhora Murakami. Ela tem o mesmo ar distraído e brincalhão dele.

Até aposto que o meu bisavô nunca ligou para a Magia Negra. E estava certa nos meus palpites, porque ele, ele morrera em 1890, muito cedo para um feiticeiro. Os outros feiticeiros da minha família podem dizer o que quiserem sobre ele, mas eu cá acho-o um pão adorável naqueles retratos de casamento, com aquele rosto redondinho, os olhos grandes, tímidos e alegres para o pintor, a mão pousada ao de leve no quimono da noiva, o ar muito informal com que ele está. Ele até podia ser bastante porreiro, não acham?


O Nälden disse-me que os outros bruxos naquela altura o chamavam de "o Rouxinol", meio no gozo, meio a sério. Porquê? Porque o meu bisavô, em vez de praticar tiro ao alvo - com um demónio como alvo - ou de aterrorizar as populações humanas ao raptar as crianças, ele costumava escrever modinhas debaixo de um pessegueiro na Primavera, tocava um pouco de guitarra - parece que bastante mal - e declamava em voz alta, enquanto bêbado, em voz cantada, na hora de ponta, em Cyborg Town. Enfim, o meu bisavô era aquilo a que o meu avô chamaria de "um homem fraco". É que o varão da Senhora Añuli fora educado pela mãe viúva, à maneira camponesa e africana, e nunca soubera o que era reinar no Ducado da Cidade Perdida.


A única coisa que o nosso Rouxinol sabia era cantar, caçar com a caçadeira, a lança, e a adaga. Pobre rouxinol, num mundo em que o bruxo comum sabia aguentar uma garrafa de Frambinam inteiro, ele só bebia cerveja bávara "fraquita". Ai, pobre poeta das florestas do Sul e dos sonetos com duas quadras e três estrofes de cinco versos, com os teus classicismos e a tua pelezinha de menina, não me admira que os outros feiticeiros te chamassem de "Menino da Mamã" e "Sua Excelência, o Apêndice do Biombo Japonês". Essa última alcunha foi dada pelo Rei dos Bruxos, Kasimir Malaghetyev, que andava de mal com a Senhora Murakami lá por 1845. O meu avô Adrian chamava-o de "O da minha Mãe". Nem se atrevia a chamar "o meu pai" para não se lembrar do ser maldito que lhe tinha concebido.


Coitado do bisavô. Afinal, ele devia ter mas é ido para a Europa. Aí, ele seria um nobre de verdade. Mas, com as Invasões de Napoleão e as ideias iluministas , o meu bisavô preferia que o seu filhinho fosse para o Japão do que ser educado por um pai irresponsável. Acho que o facto da minha mãe "nunca ter ouvido falar" do meu bisavô deve ter sido provocado pelo "coração de manteiga" do meu avô Adrian.


No século dezanove, quando o peso da idade lhe ensinou que o filho devia mas é tornar-se um bruxo a sério, ele passou a escrever poemas mais escuros, como este:


As folhas vermelhas de Maio caem,

Caem na minha sangrenta alma,

Formando uma rica, exótica paisagem,

Que escureceu, subtilmente, a minha personalidade calma!


São tiros que esbombardeiam,

No meu germânico coração,

São falinhas serenas e mansas,

Escritas na palma da artistica e feitiçeira mão!


Este país faz-me lembrar o puro e alemão pinho,

Que só o traz o mal no cheiro,

Mas este meu rebento desenvolve um mesquinho espinho,

Este país fará da minha semente o mais terrível feiticeiro!


Atira-se para as ilhas a complicada, continua e fatal malha,

Perde-se a vida, ganha-se na família a batalha!


O meu bisavô, mesmo assim, nunca deixou de amar a sua família - mesmo que o filho varão o odiasse de morte, mesmo que o meu avô o chamasse de "o marido da minha mãe", mesmo que, durante os treinos de espadachim, tentasse magoar a sério o próprio pai, o pai sempre o perdoava. E, agora apesar de tudo, Christoph William é considerado como um dos grandes poetas bellantes. Em 1940, no quinquagésimo aniversário da sua morte, os vários feiticeiros bellantes do "Clube da Cimitarra" (uma associação secreta que promovia a defesa bellante, associada com os Demónios, os Deuses, os Feiticeiros e os da Resistência) chamaram-no de "O Kolmanatry Nobre", por este ser muito excêntrico e gostar mais da música do que da Magia.

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