segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A fada com cauda de vaca...

Ano Cristão de 1589...
Era uma típica noite de Fevereiro, uma daquelas friagem que um homem nem se consegue aguentar a segurar-se num cavalo. Por adentro da mata do Norte, silenciosa e com uma nebilina espessa e quase prateada, iluminada por uma lua crescente e amarela, grande como um prato de ouro, ele cavalgava, com esperanças de chegar a Petrybloom a tempo. Quem lhe mandara celebrar o fim dos Cinco Dias Vazios com os primos a Cyborg Town? Tinha sido uma festança, era o que tinha sido. E agora, cansado, a bocejar pelo caminho, o pobre coitado do guerreiro e capitão da Guarda Este de Petrybloom, via-se Grego para ver onde é que era o caminho para a sua terra natal. Naqueles tempos, tinha-se de se atravessar a ponte do Cvnark, o rio mais a leste da ilha principal. Para além do mais, tinha de se atravessar a zona mais inclinada dos Alpes das Sereias, por montes calcorreados de arbustos de framboesa e de sementes de arroz. Com o rio lá em baixo, a terra de Petrybloom parecia ser o único seguro que alguma vez um guerreiro teria no Norte. As pessoas de Petrybloom - tal como ele - prefereriam seguir de barco o rio Bênção até ao mar e atracarem nas Ilhas da Tartaruga Flutuante de Jade do que terem de enfrentar os perigos que havía nos Alpes das Sereias na zona mais para os vales a leste.
Nessa noite, ele viu que alguém o seguia. A princípio pensou que era um dos guerreiros Japoneses que costumavam patrulhar os Alpes das Sereias em busca de alguma vítima para perguntar pelos documentos, ou se tinha algum saco de arroz ou um odre de Frambinam que estaria a esconder para vender aos seus amiguinhos de leste. Mas depois, reparou que era uma mulher, a filha de um camponês, com certeza. Não conseguia ver muito bem, porque estava escuro, mas ela parecia estar vestida com as roupas tipicamente Bellantes, montada em qualquer animal de grande porte e escuro.
Esboçou um pequeno sorriso, iluminado pela candeia que levava numa das mãos bronzeadas, semiocultas pela túnica bege-clara de uma jovem filha de camponeses, ela falou numa voz melodiosa:
- É a primeira vez que vem por aqui, ò respeitável Capitão?
Como quem não quer ficar ao lado de de tamanha delicadeza, o capitão da Guarda Este de Petrybloom acenou convictamente.
- Na verdade, menina, nunca devia ter ido por aqui...Arrisco-me a ser preso por um samurai de um bruxo qualquer...Estamos em terras de Bruxos, sabía? - Respondeu ele amargamente, ao abrandar o passo para que ela pudesse ver o seu rosto por debaixo do chapéu adornado com três longas penas de faisão, as sandálias de couro castanhas-escuras com um padrão branco e preto a indicar que era um oficial de posição. A tiracolo, o nosso capitão trazía uma espada de obsidiana de duas pontas afiadas, polida e embainhada num cinto de pele de búfalo das planícies do Deserto da Sabedoria. Como roupa, usava apenas uma tanga de caxemira para as noites geladas de Inverno e uma capa de pele de jaguar das ilhas de Shunrasen, mais a Sul. Iluminado pelas duas candeias que trazía, penduradas na sela do cavalo, ele assemelhava-se a um verdadeiro guerreiro dos seus trinta anos.
A filha do dono de cavalos - sim, porque uma mulher que soubesse montar em cavalos só podia ser filha de um homem que tivesse um rancho apropriado para eles - sorriu uma vez mais.
- Ora essa! Quem é que poderia querer prender um homem tão valente como o senhor? Um dos Falcões do Este?
Ele suspirou, pois sabia que essa alcunha só era dignamente merecida aos oficiais de patente superior ao dele. A verdade é que os Guardas do Este eram os únicos que tomavam conta da pobre população de Petrybloom, que era uma das poucas que vivia pacificamente no Norte da Bellanária.
- Há muitos homens lá em Cyborg Town que me preferiam ver morto do que como estou aqui, perante vós. - Disse o Capitão, com um ar amargo. - Só espero que chegue a Petrybloom a tempo! Os homens dos Senhores da Magia Negra iriam dificultar e de que maneira a minha viagem se chegar ao rio ao amanhecer.
A jovem de longos cabelos negros soltou uma risadinha maliciosa:
- Se calhar eu posso ajudar-vos, Capitão. Sois um homem de bom coração, e por isso, acho que os Deuses não se zangaram comigo se o salvar do perigo de ser decapitado por uma katana.
Perante esta frase, o homem apercebeu-se que estava na presença de uma fêmea de um centauro, com as costas perfuradas por um enorme buraco cheio de vermes e a ver-se o seu estômago.
Estas criaturas são mais consideradas como fadas do que fêmeas de centauros ou de outra criatura masculina. Ela aconselhou o Capitão para ficar à espera dela, numa saliência do monte, onde misteriosamente apareceu palha para o cavalo alimentar-se e recuperar forças. Muito agradecido, ele fez exactamente o que ela lhe pedira e esperou, com o cavalo amarrado a uma rocha, e a comer o farnel que tinha trazido de Cyborg Town.
E com aqueles encantos típicos de uma fada, ela fingiu-se inocente e graciosa, ao descer como um relâmpago o monte escarpado, parando só no rio que dividia as terras dos Bruxos e as terras dos Humanos. Estavam ali dois homens. Ficou surpresa, pois não passavam de dois jovenzinhos de dezoito anos, armados apenas com lanças.
A fada soltou um pequeno bocejo, e com isso, contagiou os dois sentinelas, que adormeceram num abrir e fechar de olhos.
Depois de ter atravessado o rio com o cavalo a nadar como nunca tinha nadado, o Capitão da Guarda Este agradeceu à fada com cauda de vaca e pernas de cavalo a sua preciosa ajuda. Ela desapareceu...assim que o Sol nasceu!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A língua tramada e uma conversa de raparigas

Continuação de "Especial Dezembro" ...Uma vez mais, a vida real inspirou-me a fazer qualquer coisa em Primeira-pessoa.


- Estava tanta gente no último exame de Bellante do Sexto Grau, acredita em mim! - Uma voz mais nova do que eu acordou-me. Eu cá tinha a cabeça inclinada para o outro lado da janela do autocarro.
Eu acreditava nela...O Bellante é uma língua tramada, principalmente para uma rapariga como eu que teve de estudar durante o Verão inteiro para conseguir perceber os diferentes dialectos que existem na ilha principal, como é que se escrevem os caracteres, quais são os sistemas em que se usa em cada um deles, e quais são os equivalentes em cada caso sintáctico. Estava exausta depois de no dia passado ter dado uma queca com o Pedro. A maior parte das miúdas e rapazes da minha idade já sabem fazer poemas ou ler o Bellante Arcaico do Norte, que é uma coisa muito esquisita e muito parecida com o Japonês e eu que me dá em doida sempre que os professores me perguntam qual é a conjugação formal do verbo "ver" ou "receber", ou "ser", ou lá o que o valha.
Mas enfim, que é que pensas que eu sou? Uma coscuvilheira que anda a ouvir a conversa dos outros? Só estava a tentar ver se conseguía perceber o dialecto dela, que devia ser da Cidade dos Deuses.
Bocejei. Sentía o aroma rico e formal a pão-quente com canela doce que emanava das palavras refinadas dela.
A segunda jovem de cabelos acastanhados e encaracolados (tal e qual os caracóis que por vezes aparecem na mousse de chocolate às terças-feiras no jantar) falava com um sotaque arranhado da Floresta de Cristal, mais informal, um pouco apressado nas sílabas, como se estivesse impaciente. Por mim, diria que elas tinham dezasseis a quinze anos. São mais maduras que eu, disso tenho a certeza. Pensei para com os meus botões.
A acompanhá-las, havía outra miúda, esta mais velha que eu um ano, de cabelo escuro e curto, olhos amendoados. É do Norte, e apercebi-me imediatamente disso quando cumprimentou as amigas no sotaque informal da Cidade Perdida, mais familiar para mim do que um lanche de arroz de camarão com algas doces a decorar o arroz que levava comigo.
- Vocês acham que vamos chegar a tempo? - Perguntou ela, enquanto ajeitava a carteira preta aos quadrados.
- Só se o Sr. Director não reparar que estamos lá. - Respondeu a rapariga com sotaque da Cidade dos Deuses. Tinha sardas na cara pálida e um cabelo alaranjado, com olhos claros.

Todas nós estávamos a caminho da Escola de Dois Dedos Perto da Lâmina
de Obsidiana (um nome muito apalavrado para o equivalente a uma secundária para pessoas da burguesia como jovens humanas e bruxas de famílias menos prestigiadas). Por que é que eu ia com elas? Bom, acontece que a minha Escola secundária na Cidade dos Deuses não tinha espaço suficiente para fazer o exame a mais de duzentas raparigas, que é exactamente o número total das miúdas (incluindo eu) da minha turma. É um bocado estranho, mas a minha turma só tem dez rapazes. Talvez porque eu tive que ir para uma turma de burras e de pessoas que ainda andam muito atrasadas na matéria em relação ao mundo Bellante e às línguas e à Magia. A maior parte dos rapazes da minha idade estão quase para ir para uma faculdade de magia. E como o meu pai nunca quis saber da minha educação como uma jovem Bellante, lá tive eu de me instalar com jovens humanas e com fadas e com bruxas de famílias menores. Na verdade, é muito melhor do que estar à beira daqueles gigantones dos Bruxos da minha idade. Eu, que sou um pouco alta, sou levada ao palmo por aqueles rufias de Cyborg Town e de Losjafhden! Se fosse levada para uma turma digna da minha classe e do nome da minha família, tinha de aturar uns quantos setenta magricelas de pele ressequida pelo gelo do Norte e borbulhados a olharem para mim como se eu fosse um gelado numa seca!
O mais engraçado de tudo isto é que eu não conhecia aquelas raparigas de lado nenhum, e no entanto, simpatizava com elas.
- Ele estava uma fera, o Sr. Director de Turma! - A mais nova da Cidade dos Deuses conteve um risinho embaraçado.
- Só espero que tenha tomado um café, ainda nem são oito da manhã! - Comentou a de cabelos encaracolados da Floresta de Cristal.

Deve ser difícil para os feiticeiros mais conservadores - e já agora, mais velhos - terem alunas como nós. Sabes como é, nós somos todas de uma geração que está a milhas da deles! Já para não falar de uma aluna como eu, que está sempre a falar nas aulas. Somos completamente diferentes das raparigas dos Anos 20 ou dos Anos 30 do século passado. Mas isto é mesmo assim...acho que é por isso que são homens a ensinar raparigas e mulheres a ensinar rapazes. Eu também tenho professoras, e o mesmo acontece com os meus colegas da Cidade Perdida, de Cyborg Town e de Losjafhden. É muito mais justo, não achas...? Só depois dos Anos 70 é que começaram a haver aulas com turmas mistas.

Porém há uma coisa que nunca muda: a maior parte dos directores de Turma são bruxos muito velhos, muito resmungões, e muito exigentes. Felizmente que já não existem castigos corporais! Havia professoras do sul que picavam uma jovem desobediente com um espinho de agave - uma planta que, na Ilha principal da Bellanária, só existe na Vila Enublada - na mão. A Sara diz que doía que se fartava e que ao cabo de cinco minutos, a fada que a tinha castigado já lhe tinha retirado o espinho. Não queiras saber quais eram os castigos que os Bruxos do Norte aplicavam aos jovens aprendizes e demónios, porque era muito pior. Aliás, acho que nessa altura - há mais de setenta anos - os homens nunca ensinavam as raparigas. Os Humanos eram sempre ensinados pelos pais, e só aos dezoito anos é que podiam alistar-se no Exército Bellante.

As coisas mudaram muito pela Bellanária, e eu estou tão contente que não nasci na mesma altura que a Sara!

Ora bem, aonde é que eu ia? Ah, sim. Então, as raparigas tinham entrado na Estação Manuelina, que é uma das estações principais de comboios na Cidade dos Deuses, que tem inúmeras paragens de autocarro.
Via-se logo que a ideia de terem um exame com o Director de Turma não lhes agradava nada. A dos cabelos alaranjados acendeu um cigarro, enquanto comentava:
- Isto é muito injusto! Termos que aguentar aquele sapo do Alho do Palácio das Reuniões num exame da Língua Bellante...
A rapariga do Norte esboçou um leve sorriso.
- Pelo menos não temos que aturar os rapazes do 1º ano da Faculdade de Magia Universal de Cyborg Town. - Disse ela, ao pentear o cabelo.
Foi aí que eu decidi meter o bedelho e lançei um olhar espantado para as três:
- Vocês conhecem o Alho? - Exclamei, admirada.
- É claro, ele foi o meu professor de Língua Bellante no 1º Grau. - Respondeu a rapariga de cabelos alaranjados com sotaque da Cidade dos Deuses.
- E também foi o meu! - Acrescentou a fada da Floresta de Cristal. Tremeu com um ar de quem não gostava de pronunciar a alcunha do homem com o sufixo honorífico Bellante - Ele é sinistro, não é?
Acenei com a cabeça, ao aproveitar o semáforo vermelho para abrir a caixa onde estava o meu lanche.
- Sinistro é a favor!
Então, a rapariga da Cidade Perdida reparou na minha marca de família. Ficou parva, enquanto olhava para mim de esguelha, um pouco desconfiada.
- Eh lá, tu és a Jessica Von Tifon! O que é que estás aqui a fazer?
Pousei os pauzinhos com que ia comer o arroz e franzi o sobrolho, aborrecida.
- O mesmo que vocês: a ir para o exame de Língua Bellante do 6º Grau, que é que acham? - Perguntei, com um ar nada surpreso. Não é raro as pessoas reconhecerem-me como a neta do Duque Von Tifon, mas até parece que eu sou uma das noivas do Conde Drácula ou coisa parecida. É muito chato ser-se famosa. Quer dizer, só porque eu tenho aparelho nos dentes, os olhos azuis, esta altura descomunal e um ar de má isso classifica-me como uma Von Tifon, é isso?
Suspirei quando elas ficaram com um ar envergonhado, como que a dizer: "Pois claro, somos mesmo estúpidas..."
- Não faz mal, também posso ser vossa amiga. - Disse eu, ao esboçar um pequeno sorriso, enquanto que dedilhava nos meus caracóis cor de sangue. - Então, quais são os vossos nomes?
- Eu chamo-me Júlia Nestorovna Kaminskaya, sou humana. - Disse a de sardas com cabelos alaranjados e lisos.
- Eu sou a Oshiro Riko, filha de bruxos de patente baixa. - A mais velha da Cidade Perdida sorriu ao inclinar a cabeça.
- O meu nome é Sophia Xocolatlicue. - Timidamente, a fada acenou com uma das mãos, mas de cabeça erguida. - Sou uma dríade.
Vou-te explicar por que razão nós na Bellanária quando nos apresentamos a alguém, temos de dizer que classe é que somos: é uma questão muito antiga, pela qual a língua Bellante se rege em graus de formalidade.
Assim, eu podia saber como é que trataria as três. De qualquer maneira, eu não ligo muito a isso. A língua Bellante é mesmo tramada! Mas ao menos encontrei raparigas da minha idade - ou que pelo menos, compreendem-me. Começámos por falar sobre como eu era uma nódoa a Bellante, e elas disseram que não era assim tão difícil. Ao chegar à Escola Dois Dedos Perto da Lâmina de Obsidiana, não estava mais sozinha. Tinha três amigas muito simpáticas!